A Educação que se constrói como “EspecialmenteInclusiva”
Rosa Madeira - Universidade de Aveiro
Neste artigo queremos abordar a Educação Especial e a Escola Inclusiva, como indícios da relação das Sociedades com a Diferença ou Diferenças que, em cada momento da sua história, estas reconhecem e sancionam, positiva ou negativamente.
Esta perspectiva nos parece interessante na medida em que consideramos que as pessoas portadoras de deficiência constituem um dos grupos sociais que a sociedade identifica por diferenças que são constantemente transformadas em critérios de discriminação social que, por sua vez, legitimam o desvio das suas trajetórias da confluência da vida comunitária.
É neste contexto que nos propomos reflectir sobre as implicações das concepções e práticas dos educadores e de outros atores sociais a quem a sociedade delega o poder de sinalizar, descrever, medir e atribuir significado valorativo a características, desempenhos e interpretações das crianças e jovens com deficiência.
Consideramos que a educação tem sido promovida como meio de homogeneizar disposições sociais e níveis de produtividade individual que contribuem para consolidar processos de normalização de funções e papéis sociais a que resistem, por diferentes razões, diversos grupos sociais. Desta perspectiva, podemos considerar que as pessoas portadoras de deficiência fazem parte de um grande grupo que inclui as minorias étnicas, lingüísticas, raciais e/ou religiosas, na condição de imigrantes, de refugiados ou de pobreza.
O que há de comum em todos estes casos é que a diferença de atributos pessoais e o respectivo impacto nas relações sociais é desigualitariamente avaliado pelo grupo dominante, que se identifica e faz-se identificar como padrão de referência. Assim, o problema da relação das sociedades com as diferenças individuais pode também ser analisado criticamente como expressão e reprodução de assimetrias entre os que definem e os que são definidos como “diferentes”.
É considerando a Educação inclusiva como um dever das sociedades que se construíram historicamente sobre a recusa da naturalização da desigualdade entre seres humanos, que se pode problematizar a educação especial que justifica a separação de contextos e de trajetórias de vida das crianças e jovens da mesma Comunidade. Deste ponto de vista, a Escola inclusiva constitui uma alternativa à Educação Especial, que se constrói por referência a padrões de desenvolvimento, de aprendizagem, de comportamento e que reforçam concepções de média, de norma e de desvio.
Neste artigo nos propomos revisitar e contextualizar, social e historicamente, a narrativa da experiência de um grupo de educadores que animou um movimento social local que se tornou conhecido a nível nacional e internacional como alternativa a formas convencionais de educação especial.
Como veremos adiante, este movimento emergiu em Portugal em meados dos anos 70 e teve a sua origem a interacção entre pais, profissionais e outros agentes locais ligados aos sectores de educação, saúde e segurança social que, ao longo do tempo, se foram constituindo como "comunidade de interesses". Foi a partir desta estruturação mínima das suas relações interpessoais que alguns destes elementos da comunidade puderam desenvolver uma filosofia social e adoptar como finalidade comum, o não consentimento e a erradicação da exclusão de qualquer criança da comunidade.
Dentro de limites, variáveis ao longo do tempo, este grupo pôde construir a sua ação à margem dos tipos ideais que estruturavam a educação especial. Para isso, teve que desconstruir os estereótipos de “deficientes”, de "inadaptados", de “reabilitadores” ou “reeducadores” incorporados no seu próprio pensamento, linguagem e práticas, nas quais se reproduziam os princípios de visão e de divisão do mundo social que excluía aqueles para quem reclamavam a inclusão social.
Era esta realidade social objectivada nas situações, mas também interiorizada nas subjectividades construídas pela socialização primária e secundária, que grupo se dispunha a reconhecer para transformar, através da acção-reflexão-acção nas comunidades de interesse que constituía. Era a partir desta outra base social da sua intervenção que puderam investir consistentemente na reinvenção de trajectórias de inserção e de produção de conhecimento social, que era percepcionado como contra-corrente à reprodução da desigualdade e da exclusão inerente à sociedade. Sociedade formada pela hierarquização de laços de pertença, inclusão e identidade comunitária e por princípios universalistas que constituem os Estados-Nação.
Pensamos que a narrativa deste percurso pode tornar mais visíveis e pronunciáveis as relações sociais que se estruturam e definem em diferentes níveis ou escalas de acção social. Pode contribuir para desnaturalizar a desigualdade de oportunidades de inclusão e reconhecimento social, justificada pela categorização de diferentes características, tipos e níveis de desempenho de interpretação da realidade, que classificam para hierarquizam indivíduos e grupos sociais, qualificando ou desqualificando subjectividades segundo a posição.
O caso que aqui discutiremos nos parece também interessante porque põe em evidência a relação da educação com uma sociedade que, tendo saído, através da revolução de Abril de 1974, de um período de cristalização das instituições sociais, teve que passar por sucessivos processos ou fases de estruturação/reestruturação das relações (macro, meso e micro) sociais, ao longo dos últimos 30 anos.
Reconhecendo-se como parte desta história social e desta totalidade dinâmica de relações sociais, o grupo foi-se movendo e foi mobilizando recursos locais e outros atores sociais na criação de espaços e laços sociais novos que tornaram possível a inclusão de alguns grupos, na reconstrução constante do seu próprio conhecimento social e pedagógico e na cuidadosa exploração de margens de liberdade de pensamento e de acção social no interior da comunidade e do Estado.
Ao dar visibilidade aos progressos e retrocessos vividos por estes educadores, que se descobriram apenas relativamente autónomos no interior da Comunidade e do Estado relativamente autónomo face a instâncias internacionais, queremos pôr a hipótese da Escola inclusiva poder ser, dentro de alguns limites, construída como lugar de tomadas de posição que desestabilizem os mecanismos da reprodução social, precipitando assim a reconstrução e a democratização social.
Defendemos que a replicação ou a alteração das dinâmicas e das relações sociais estabelecidas pela exigência de funcionalidade do regime de acumulação capitalista, dependem, em certa medida e em dados momentos cruciais, do compromisso que tanto educadores quanto os pais e demais atores sociais, assumem relativamente às crianças, aos idosos, às pessoas portadoras de deficiência ou em situação de crise e de outras minorias ( étnicas, raciais, sexuais, religiosas). Sendo os Educadores social e politicamente investidos da tarefa de discriminar diferenças ou antes sujeitos “diferentes” que perturbam a “harmonização” de funções sociais, podem recusar ou negociar critérios de classificação social que posicionam os sujeitos como “desiguais”. De certa forma e em certa medida, a manutenção da funcionalidade ( pelo menos parcial) dos sistemas económicos que produzem a exclusão e que não estão comprometidos com a construção da igualdade entre todos os cidadãos, dependerá do modo como os educadores se posicionem diante das circunstâncias dos grupos subordinados ou excluídos.
Foi através desta tomada de consciência e de posição (axiológica e política) que, a nosso ver, este grupo pôde desenvolver um ponto de vista alternativo à possibilidade e direito à inclusão social, como princípio a universalizar pela sua praxis individual e colectiva. A ideia de que seria possível construir um outro lugar de existência comum, em que aqueles que se descobriam como semelhantes poderiam valorizar a singularidade pessoal de todos os outros, parece ser a utopia que deu consistência à multiplicidade de acções desenvolvidas pelo grupo de Águeda.
Foi procurando desocultar para compreender estas contradições sociais entre a retórica da igualdade e o sancionamento das diferenças com efeitos sobre a vida de alguns grupos mais vulneráveis à discriminação negativa, que o grupo pode ir construindo um “outro” caminho feito a caminhar, contra a exclusão e a favor da inclusão, contra a diferenciação desigualitária e a favor da construção da igualdade, contra a classificação das características segundo padrões de norma, media e desvio e a favor reconhecimento das diferenças como expressão de subjectividades, assumindo a diversidade e a interdependência humana como valor e desafio a imaginação social.
Para situar os leitores no contexto a que nos referimos, começaremos por fazer uma breve referência à comunidade em que se inscreve esta experiência e ao processo de construção da igualdade e da diferença a que o grupo teve que responder no campo da educação especial.
Num segundo momento passaremos a narrar e a problematizar o movimento social contra a exclusão das crianças portadoras de deficiência nos contextos educativos da comunidade e na escola, enquanto lugar social situado entre o Estado e a Comunidade.
De seguida, faremos uma incursão sobre como as relações sociais, estruturadas a nível macro social e no exterior da comunidade, participaram para que o movimento pela inclusão em curso tivesse que ser traduzido em outras linguagens para manter-se dentro do âmbito da acção do Estado Providência e ao abrigo das relações locais que reagiam à problematização da desigualdade social como constrangimento do acesso e sucesso educativo das crianças dos grupos subordinados.
Finalmente, retomamos a discussão sobre a Educação Especial e a Escola Inclusiva como pólos de uma tensão social que se expressa nas decisões políticas da Sociedade mais ampla e que deveriam ser apreendidos como limites mas também como desafios à reconstrução social por novos sujeitos colectivos que se possam identificar pela capacidade de atravessar fronteiras entre escalas, saberes, poderes, linguagens e as próprias disposições sociais incorporadas nas suas práticas, para reinventar a sociedade.
A construção da igualdade e da diferença na Comunidade de que fala a narrativa
A Experiência que aqui apresentamos teve lugar num Município localizado na zona Centro de Portugal., com cerca de 50.000 habitantes. Trata-se de uma região reconhecida pelo desenvolvimento econômico alcançado com a industrialização que, em poucas décadas, transformou agricultores em operários e alguns operários em empresários.
Embora a população mantenha laços afetivos à terra e a valores que estruturam e dão significado ao mundo social rural, o ritmo e a intensidade do processo de industrialização submeteu todos os grupos sociais a um processo de aculturação e de reestruturação da sua vida individual e colectiva segundo valores da Modernidade.
A Revolução de Abril em1974 veio acelerar e orientar estas transformações no sentido da democratização das oportunidades sociais e da desestabilização de hierarquias sociais que eram naturalizadas pelas comunidades. Naquele período, as pequenas e médias empresas multiplicaram-se por iniciativa de muitos operários e ex-agricultores que na época tinham um mínimo de propriedade para investir o capital tecnológico que tinha desenvolvido numa posição subalterna e ao serviço de grandes empresas.
Esta alteração fez com que alguns grupos tivessem melhorado as suas condições de vida e de acesso a outras oportunidades, designadamente a novos rendimentos e direitos sociais. Este processo não abrangeu, no entanto, todas as famílias residentes e muito menos as famílias imigradas de zonas pobres do interior. A estas famílias coube assumir quase exclusivamente as tarefas produtivas que requeriam maior esforço e que, por serem pior retribuídas, foram abandonadas pelos naturais. Esta posição, baseada na distinção negativa entre sujeitos que deixaram de reconhecer-se como semelhantes, fez com que muitas famílias tivessem perdido laços sociais como o centro da comunidade, tornando-se assim reclusas da periferia..
Para diferenciar-se e para consolidar a nova identidade social, definida pela alteração de posições sociais relativas, a classe social emergente começou a definir como “ïnferiores” os grupos subordinados ou os que não podiam garantir o aumento de níveis de produtividade. A estes grupos era atribuída a responsabilidade do não aproveitamento das oportunidades sociais que iam sendo criadas mas que só eram universais na aparência e na retórica.
A estas famílias naturais, que foram discriminadas negativamente para legitimar as novas desigualdades sociais que se estabeleciam localmente, vieram entretanto juntar-se populações do interior e as famílias provenientes dos países africanos descolonizados naquela época. As condições sub-humanas de alojamento e a inexistência de relações de acolhimento dos que eram identificados na comunidade como outros, ou como “os de fora”, contribuiu para a desqualificação de algumas áreas de residência que passaram a concentrar alguns segmentos da população.
As barreiras sociais e de comunicação que foram sendo construídas criaram condições de estigmatização daqueles grupos por aqueles que animavam os novos círculos sociais criados com a melhoria de condições de vida, de contrato social e de reconhecimento de direitos sociais.
Esta dinâmica de reestruração e ressignificação das relações locais, segundo outras lógicas de pertença, identidade e inclusão social, participaram para o empobrecimento relativo de muitas famílias de trabalhadores indiferenciados, cuja imagem de precariedade e dependência passou a contrastar cada vez mais com a imagem de sucesso e “altruísmo” das “outras” famílias.
O próprio isolamento que havia deixado algumas famílias sem redes de protecção social, as distanciou dos espaços onde ia sendo construída a cidadania promovida com a democratização do Estado. Era neste outro lugar que as outras famílias da comunidade começavam a substituir hábitos de solidariedade directa sem receber contrapartidas simbólicas.
Nesta dinâmica, combinava-se a luta de uns grupos por melhorar as suas novas condições de vida individual com a resistência de outros grupos contra a apartação social que o grupo de educadores, pais e outros agentes locais de Águeda, encontraram, indo de lugar em lugar e quase porta a porta, como é o caso de crianças cujas características físicas ou desenvolvimentais pareciam comprometer a integração social também das suas famílias.
Um grande número das crianças, jovens e adultos destas zonas em transformação eram invisíveis na comunidade. As famílias viviam isoladas e na sua maioria tinham rompido com as redes de apoio social tradicionais da comunidade. Na ausência de redes sociais formais elas tinham que atender e por vezes esconder, os seus dependentes com deficiência, vistos como diferentes pela comunidade.
A acção do grupo foi desencadeada pelo contacto directo com situações de total marginalidade em que se encontravam as crianças e jovens portadoras de deficiência e outras que a comunidade sinalizava por diferenças comportamentais. Mobilizado pela preocupação com o impacto da relação negativa das comunidades e das famílias com as diferenças destas crianças, o grupo se organizou contra as condições desumanizadas e desumanizantes geradas pelo grau de restrição e abandono social em que elas vivam, sob a responsabilidade exclusiva de pais, também isolados e estigmatizados pelo meio.
A construção de espaços de inclusão dos excluídos, no interior das Comunidades
Na luta por encontrar respostas para a realidade de que tinha tomado consciência, o grupo obteve uma casa emprestada como sede da sua intervenção, mas rapidamente esta foi transformada num Jardim-de-infância1 que pudesse integrar parte das crianças que estavam reclusas no espaço doméstico ou ainda no espaço da fábrica e/ou do trabalho agrícola de subsistência. Neste novo lugar, criado para as crianças da comunidade, 20% das vagas pertencia a crianças portadoras de deficiência, independentemente do tipo e do grau das suas dificuldades de movimento, de comunicação ou de autonomia em actividades de vida diária, decisão que foi facilitada por já haver alguma experiência acumulada por uma educadora e por dois pais que integravam o grupo base.
Durante quase duas décadas, este Centro de Educação Integrada foi a sede do grupo que animava o Movimento pela inclusão no Município, apesar da inevitável dispersão dos profissionais pelos novos serviços de educação, saúde e apoio social que foram sendo criados para reforçar e diversificar os recursos locais de apoio às crianças, suas famílias e educadores de infância.
Durante duas décadas este serviço reuniu pessoas em torno de ideias, mas sobretudo de problemas sociais concretos de crianças excluídas ou em desvantagem, que resultaram em processos e projectos de ações, que foram sendo formalizadas como serviços de apoio à infância na comunidade. Nestes novos serviços, a inclusão das crianças e de grupos em risco de exclusão social se instituiu como um princípio de toda a acção social.
A partir de Outubro de 1975, um grupo de crianças identificadas como portadoras de autismo, síndrome de Down, surdez profunda, paralisia cerebral e atrasos graves de desenvolvimento, começou a fazer parte dos vários grupos de crianças deste Jardim de Infância. O processo de integração de cada uma e de todas as crianças na confluência da vida do Centro, foi pensado a partir de uma outra lógica ou racionalidade que permitia ver as vantagens dos grupos heterogéneos, como forma de promover relações de interdependência entre crianças com diferentes idades, níveis de desenvolvimento, interesses e recursos de autonomia e de comunicação.
Na perspectiva do grupo e dos profissionais que foram sendo integrados, a finalidade seria prestar a todas as crianças os mesmos cuidados e a mesma atenção educativa de que cada uma necessitasse para lidar com estas novas circunstâncias e regras de convivência entre elas e delas com os adultos. O que importava ao grupo era explorar situações de interação social, de comunicação, de descoberta e de aprendizagem entre crianças diferentes (porque únicas) dentro e fora das salas de actividades, com a participação dos pais, irmãos e de outras pessoas da comunidade envolvente.
O desafio era facilitar e manter a interação entre as crianças, entre os educadores e os pais, ou seja, entre conjuntos de relações interpessoais e entre grupos que se fossem constituindo a partir de interesses comuns. Era nestes grupos que se procurava enriquecer as oportunidades de comunicação e de aprendizagem entre todas as crianças com atenção a cada uma.
As crianças com maiores recursos de participação estavam envolvidas nas mesmas situações em que os seus companheiros com dificuldades de locomoção, comunicação, compreensão e adaptação social, havendo momentos em que as diferenças de modos e níveis de desempenho exigiam muita criatividade dos educadores que tiveram que redefinir com os pais o que se passaria a entender como uma “ boa educação” para todos.
O que teve que ser constantemente revisitado foram os objetivos e os conteúdos das experiências das crianças, com que se ia dando forma e consistência ao currículo e aos diversos contextos criados. O que em nenhum momento era posto em causa era a integração como direito social inalienável de cada criança.
O foco passou a ser a intencionalização das interações sociais com e entre as crianças e dos adultos entre si, porque esta era considerada a actividade principal dos educadores, partilhada com outros adultos envolvidos no processo. A capacidade de comunicação e a imaginação de contextos que pudessem prevenir e tirar proveito das tensões e dos problemas práticos através do o uso dos espaços, do tempo, dos objetos e dos acontecimentos, eram colectivamente transformados em materiais de formação. O próprio papel dos educadores e dos pais foi sendo redefinido em função dos contextos, pretextos, formas e conteúdos de comunicação que emergiam com e entre as crianças e que, devido à novidade e risco da situação criada, requeriam ser escutadas com mais atenção.
O reconhecimento das diferenças, radicado na preocupação com a igualdade de oportunidades, criou um outro sentido para a educação, na sua dimensão comunitária.
Em 1978, muitas das crianças com deficiência eram reconhecidas e investidas como agentes de sensibilização dos seus vizinhos e familiares que começavam a focar o olhar sobre as potencialidades de desenvolvimento que estavam ocultadas pela condição anterior. O levantamento de novas situações e a formulação de problemas concretos decorrentes da integração ou do isolamento de outras crianças desencadeava mais e mais respostas positivas de comunidades.
A invenção do lugar para a diferença na Escola enquanto lugar de normalização
Em 1979 as primeiras crianças começaram a atingir a idade de ingresso na escolaridade obrigatória e algumas escolas públicas da comunidade da sua residência, abriram as suas portas aos grupos de Jardim-de-infância que incluíam as crianças com mais necessidades de atenção individualizada.
As crianças foram recebidas voluntariamente por professoras experientes que aceitaram o desafio de pensar como e o que ensinar na escola, além da leitura, da escrita e do cálculo, tendo em conta que o grupo incluía crianças com disposições e recursos cognitivos e sociais muito diferentes.
Para apoiar estas professoras na sua experiência, alguns elementos do grupo base se organizaram - interdisciplinar e interprofissionalmente - como Grupo de Apoio ao Desenvolvimento da Criança. A partir deste espaço foi desenvolvendo modos próprios de abordagem dos problemas emergentes na comunidade, procurando suporte científico e técnico junto de especialistas de serviços diferenciados, inexistentes na comunidade.
Este grupo constituiu a base da criação de vários momentos e contextos locais de comunicação e tomada de decisão entre profissionais, pais e outros agentes da comunidade; criavam o “lugar” necessário para a reconstrução de respostas antigas para problemas novos, com que as escolas passaram a conviver positivamente a partir do momento em que a integração das crianças portadoras de deficiência tornou mais visível e pronunciável a diversidade de níveis de desenvolvimento, experiências sociais e culturais vividas em diferentes contextos materiais e de socialização, presente nos grupos.
No Grupo de Apoio ao Desenvolvimento da Criança havia uma médica, uma educadora e uma assistente social responsável por estruturar e dinamizar estes espaços/momentos de comunicação, em que participavam professores das turmas e professores de apoio, bem como pais e, em alguns casos, as próprias crianças envolvidas nas situações em causa. A reunião destes elementos, acontecia em resposta a pedidos de ajuda na resolução de problemas emergentes de relacionamento das crianças entre si, ou relativamente às regras, aos conteúdos de ensino/aprendizagem ou com as actividades que, até aquele momento, regulavam as relações e a comunicação no contexto da sala de aula.
A reunião deste grupo era solicitada também em momentos de avaliação/planificação do que ensinar e aprender em salas de aula além da leitura, da escrita e do cálculo. Neste caso, as soluções eram procuradas nas respostas de perguntas tão simples quanto as seguintes:
que problemas “nos” preocupam?
o que a criança faz com o que, onde, quando e com quem?
o que mais a criança pode saber e fazer para participar mais vezes e durante mais tempo, em contextos de interação com um maior número de pessoas, potencialmente significativas para as suas vidas ?
quem, como, onde e quando pode ensinar o que ela precisa aprender ?
que recursos existem ou poderiam ser criados para facilitar esta aprendizagem e melhorar as condições de relacionamento entre todas as pessoas implicadas neste processo educativo e na vida da criança ?
A experiência e as memórias deste “trabalho social” local bastante delicado, foi sendo partilhado entre grupos locais e entre estes e outros grupos de professores de fora da comunidade, que estavam a tentar também a integração das crianças que eles consideravam especiais. No final de cada ano o conhecimento social e pedagógico, que era assim reconstruído e enriquecido no face a face, era comunicado em Seminários anuais em que participavam outros profissionais da comunidade, alguns pais e especialistas convidados das áreas da saúde, da educação e formação, da segurança social e/ou intervenção comunitária. Nestes seminários surgiam a cada ano diversas “agendas” de formação e de intervenção local
Em todo este processo houve preocupação de envolver os meios de comunicação social, designadamente na divulgação dos encontros anuais que decorreram entre 1978 e 1986. A projecção social destes encontros de professores em torno da experiência de integração das crianças com deficiência mental em Jardins de Infância e nas Escolas, tornou a Experiência de Águeda conhecida de especialistas de serviços oficiais, de Universidades e, através deles, de peritos da OCDE e UNESCO e de investigadores estrangeiros ( Genéve, Parma, Nebraska ).
A visibilidade pública e externa da Experiência foi, sem dúvida, um dos factores que validou e acreditou localmente as experiências pedagógicas que se construíam contra a discriminação e segregação das crianças e jovens com deficiência da comunidade. Outro factor foi a produção e divulgação continuada de “imagens humanas” da intervenção, devidamente informadas por dados actualizados de avaliação que fundamentavam as decisões e as práticas em curso.
Esta divulgação não visava apenas os profissionais dos serviços de saúde, educação ou de protecção social, mas também outros atores locais sem formação específica, investidos da responsabilidade na promoção de bem estar de toda a população. A intervenção social foi sendo assim traduzida em diversas linguagens conforme as disposições políticas, sociais ou religiosas ou a escala de acção ( lugar, Freguesia, Município, Distrito, País ...) de quem lia e interpretava a experiência narrada, como construção de soluções éticas para problemas práticos de inclusão de todas as crianças e respectivas famílias na comunidade.
Construindo a oficialidade das práticas no interior do Estado Providência
A consolidação de todo este processo não teria sido viável se não tivesse havido a preocupação de o situar numa esfera pública mais ampla do que a Comunidade ou da acção dos profissionais e da própria Bela Vista Centro de Educação Integrada enquanto sede do grupo que animava o movimento. Não teria bastado o cuidado de reflectir sobre as experiências em curso, com os pais e profissionais directamente envolvidos na acção para validar ou acreditar uma experiência pedagógica investida como intervenção para a transformação da realidade social que excluía as crianças que pretendíamos incluir. Isto foi realmente possível entre meados dos anos 70 e 80, no período a seguir à Revolução que reclamava a democratização de toda a sociedade, pela sociedade.
A medida em que os anos 80 avançavam, a responsabilidade emancipatória do Estado nos diversos âmbitos da sua acção, começou a ser formalizada e regulada não só internamente mas também pelo exterior e por instâncias internacionais. Este foi o chamado ”período de normalização” das políticas sociais públicas em Portugal ( cf. Rodrigues,F; 2000)
A experiência de integração na escola pública de crianças portadoras de deficiência, até aí dinamizada na e pela comunidade, exigia agora ser formalizada e sistematizada como política educativa, orientando-se por critérios tendencialmente universais, portanto menos particulares e locais. Esta oficialização da acção do grupo abriu espaço para o diálogo com Serviços do Estado dos quais dependia também o provimento de recursos humanos e financeiros para manter respostas criadas na relação directa com novas situações-problema, cujas soluções tinham sido “inventadas” com os recursos existentes.
Até 1981 o argumento do combate à segregação das crianças e suas famílias tinha sido suficiente para que a Divisão do Ensino Especial do Ministério da Educação tivesse podido vincular quatro professoras à Bela vista, para desenvolver as experiências de integração de crianças com problemas graves de desenvolvimento/comunicação/comportamento no espaço de sala de aula. Neste segundo momento esta acção pedagógica no interior da escola pública, passou a constituir um problema legal que era preciso resolver.
O Estado e a Comunidade precisaram combinar esforços para instalar localmente uma estrutura jurídico administrativa e pedagógica pública que enquadrasse esta acção e outras desencadeadas e apoiadas pela Bela Vista e pelo Grupo de Apoio ao Desenvolvimento da Criança. A criação de uma Equipa (Municipal) de Educação Integrada, veio enquadrar, além do apoio na sala de aula, o apoio domiciliário a crianças com alto risco de consolidarem atrasos de desenvolvimento, sem acesso a Jardins de infância e o apoio itinerante às crianças com deficiências, sensorial e motora, que era prestado por professores especializados que faziam parte da Equipa (Regional) de Educação Especial, cuja acção era facilitada com transporte, salas e algum material da Bela Vista.
O Estado cumpria assim o que era prometido pelo artigo 71º da nova Constituição da República: “realizar uma Política Nacional de prevenção, de reabilitação e de integração dos deficientes, a desenvolver por uma pedagogia que sensibilize a sociedade quanto aos deveres de respeito e de solidariedade para com eles e assumir o encargo da efetiva realização dos seus direitos, sem prejuízo dos direitos e deveres dos pais e tutores”.
Foi neste contexto em que a Comunidade e o Estado assumiam a responsabilidade de garantir a educação como direito das crianças enquanto cidadãs e membros da comunidade, que a política de Educação Especial em Portugal passou a desenvolver-se para além do apoio financeiro, destacamento de professores e acompanhamento técnico pedagógico a alguns Centros de Educação Especial que existiam “residualmente” antes da Revolução.
Nos anos 80, a política de Educação Especial criou algumas Equipas de Educação Especial, com professores especializados que deveriam garantir apoio à integração de crianças com deficiências sensoriais e motoras em grandes áreas geográficas e passou a integrar muitas acções promovidas por pais e por profissionais generalistas comprometidos com a mudança social. Um pouco por todo o país surgiam grupos que, em nome da luta contra a segregação social ou a favor da educação especial, criavam respostas sócio-educativas para as crianças discriminadas por diferenças de desenvolvimento e/ou comportamento. Entre estas respostas estavam o Movimento/Experiência de Águeda, as Cooperativas de Educação e Reabilitação de Crianças Inadaptadas,(CERCI’s) e os Centros de Paralisia Cerebral. Pouco a pouco, estas respostas foram integradas oficialmente numa rede ou conjunto de serviços que deveriam responder, em nome do Estado, pela integração daquela população.
A tomada de consciência coletiva da diversidade de respostas emergentes, reconhecidas no campo das políticas educativas designadas como “Educação Especial”, teve dois momentos fortes: o Congresso de Educação Especial, em Lisboa em 1979 e o Ano Internacional da Pessoa com Deficiência.
O reconhecimento mútuo de propostas diferentes e por vezes antagónicas para esta problemática social, abriu espaço para um debate alargado de ideias sobre a integração, entendida por uns como meio e por outros como objectivo de práticas de educação especial apoiados em sistemas de categorização de “incapacidades” e/ou “inadaptações”, entendidas como barreiras à integração social.
Este debate aberto de ideias sobre as diversas formas de promover o direito à educação das crianças e jovens com deficiência foi bastante facilitado pela acção de alguns Atores-Chave na análise de necessidades e provisão do atendimento a crianças e jovens portadores de deficiência. De entre estes destacamos a Chefe de Divisão do Ensino Especial e o Director do Centro de Desenvolvimento da Criança do Hospital Pediátrico de Coimbra que representavam para os pais e profissionais a criação pelo Estado de oportunidades educativas e o acesso ao diagnóstico, encaminhamento e apoio às crianças e famílias nas Comunidades.
O papel de ambos foi fundamental para alimentar o diálogo entre actores locais que estavam igualmente comprometidos na reinvenção de espaços de inclusão das crianças, excluídas como “diferentes” no interior das suas comunidades. A grande proximidade que cada um mantinha com os atores que dinamizaram cada tipo de resposta local, permitiu que o enquadramento jurídico-administrativo e a dotação de recursos humanos, logísticos e financeiros não pusesse em causa nenhuma das acções em curso, assegurando antes a organização local de respostas diferentes que deveriam ser pensadas em conjunto, em grupos ou equipas locais constituídas como co-responsáveis por desenvolverem recursos e redes de suporte comunitário às famílias e escolas.
A tradução da mudança social na língua e cultura da Educação Especial oficializada
Para compreender como, em Portugal, a Educação Especial foi sendo construída como Educação Integrada até poder reclamar a Escola Inclusiva, nos parece fundamental considerar que na sua raiz está o drama e o empenho de pais que foram capazes de sensibilizar e comprometer profissionais da sua comunidade na “causa” dos seus filhos privados do direito à educação, protecção e inserção social. Não se pode ignorar também que estes mesmos profissionais eram, na sua maioria, generalistas mas também militantes na mudança das condições de vida das populações e como tal estavam predispostos a considerar perspectivas de acção alternativa àquelas em que e para que foram formados no regime político deposto.
Por outro lado, parece importante considerar também que, principalmente os especialistas que estiveram envolvidos desde o início na mobilização dos pais e das comunidades locais, partilhavam com os seus parceiros generalistas o pressuposto de que “o que” estava em causa, nos casos que analisavam, não eram apenas barreiras - físicas, afectivas, cognitivas - colocadas pela deficiência. O ambiente social que se vivia naquele momento dava muita visibilidade e voz à questão da igualdade de direitos sociais. A questão das barreiras não era entendida como construção unilateral mas como construção histórica e social da desigualdade e da separação entre indivíduos e grupos sociais.
Deste ponto de vista, as barreiras eram vistas como problema não apenas individual mas social, que incluía o modo como as famílias, as escolas e as comunidades se relacionavam com as pessoas portadoras de deficiência. O olhar e o discurso que mediava o diálogo dos especialistas com os pais e com outros agentes da comunidade, era influenciado no sentido de relativizar o que seria o alvo da sua atenção e actuação - a anormalidade de características ou funções ou o desvio de padrões convencionados de desenvolvimento, funcionamento, etc.. Como o neuropediatra que atrás referimos como actor-chave destas mudanças:
“ Nessa altura os técnicos eram menos, havia poucos e nós suprimíamos um pouco todo protocolo. A maior parte das crianças que observávamos precisavam era de apoio educacional. Passada a fase de diagnóstico, precisavam era de intervenção educativa de modo que o papel do técnico diferenciado era na fase do diagnóstico, depois a intervenção era local. Os planos individuais eram realizados pelos pais em casa; eram feitos em caderninhos que os pais levavam para casa para registar o que a criança fazia e que levavam algumas indicações para o que fazer para atingir a etapa seguinte. Não era pelo técnico, era pelos pais, eles os traziam escritos e as dúvidas apareciam. Com isto minimizávamos a deficiência, o problema e dávamos poder. Valorizar o que é bom, era uma filosofia social. Nós tínhamos que estar disponíveis para os pais poderem estar a vontade e haver a possibilidade de fazerem a sua proposta. Havia respeito pelas famílias e pelas Comunidades.
“No pós 25 de Abril, havia um certo poder local; havia Comunidades que estavam a organizar-se e a responder às suas necessidades e preocupações e uma dessas era a criança deficiente…As pessoas estavam mais livres, muito mais conscientes do seu valor pessoal e da sua capacidade…construíam escolas, fizeram estradas, centros de dia e essas coisas tinham, na verdade um cunho diferente. Não se estava a espera do Estado e o próprio Estado achava que as pessoas tinham capacidade de fazer. As soluções eram encontradas localmente” ( Luís Borges; 2001)
Era na confluência deste processo de mudança social que se encontravam também os analistas e decisores de políticas sociais e educativas, e neste caso, da Educação Especial. Era este conjunto de atores e de relações sociais que, embora desigualmente posicionados no interior do Estado e relativamente às comunidades, partilhavam entre si a aspiração de prestar serviços no quadro de um projecto de sociedade que prometia a emancipação colectiva, contra a regulação hierárquica de práticas e discursos que se desejavam novos e reconhecíveis como políticas públicas.
Em 1981 afirmava-se a partir do centro de decisão das políticas de educação especial que em Portugal :
“ existem elementos (de ordem sociológica e cultural) muito positivos que interessa a todo custo preservar…(designadamente) as imensas possibilidades de integração familiar e social que são dadas a tantas crianças e jovens com deficiência, especialmente nos meios rurais e em alguns bairros urbanos, em que a vida Comunitária e a entreajuda constituem realidades quotidianas …e em que escolas e professoras com ajuda pedagógica, ou sem ela, aceitam integram alunos com deficiência …coma intensa participação dos pais na organização das estruturas educativas para os seus filhos” ( Bernard da Costa; 1981).
A seguir aos dois primeiros anos dos anos 80, período que como atrás referimos é reconhecido como fase da normalização, todo este processo de reconstrução social baseada na tomada de consciência dos direitos das pessoas portadoras de deficiência, dos profissionais da base e das comunidades passou a ser traduzido em outras linguagens, que serviam outros modelos de educação e de integração deste grupo social.
Para assumir-se como parceiro de diálogo internacional, Portugal recorreu a peritos de instâncias internacionais como observadores externos num momento em que a Educação Especial estava na agenda de países centrais, como os Estados Unidos e a Inglaterra, com a publicação da PL 94-142 em 1977 e a Educational Act em 1981.
Embora Gulliford (1988) considere que as mudanças no campo da educação especial fossem resultado da acumulação de conhecimentos sobre práticas de diferenciação de métodos de ensino e de aprendizagem segundo diferentes tipos de deficiência, da descoberta da natureza das deficiências, das estratégias de ensino, do currículo e da implicação dos educadores de ensino especial em acções destinadas a crianças de idade pré-escolar e de jovens em idade pós escolar, outros autores analisam estas mudanças como resultado de tensões e contradições sociais que tornaram problemático o encaminhamento das crianças e jovens para meios restritivos.
Os argumentos que põem a tónica na mudança de filosofia social, referem que foram os estudos do comportamento e da aprendizagem que puseram em causa o investimento social que se restringia a manter as condições adaptativas de sujeitos que poderiam valorizar atingir um funcionamento social autónomo ( Smith e Weisworth;1975). Outros chamam a atenção para os aspectos emocionais, políticos e humanos do “handicapismo” ou seja, a disposição de rotulagem e classificação das pessoas por categorias de deficiência sem qualquer ligação com interesses científicos, educacionais ou administrativos (Heward e Orlansky;1984). Lembram estes autores que já em 1972, afirmava que “ a educação especial muitas vezes foi um processo de exclusão mascarado em processo de recuperação de crianças que causavam dificuldades ao sistema educativo e que eram encaminhadas para uma cadeia de serviços de ensino especial onde permaneciam o resto das suas vidas”.
Embora Portugal reconheça muitas das suas razões e motivos de mudança nesta discussão sobre os efeitos da categorização e encaminhamento das crianças, o certo é que as raízes e trajectória históricas, as condições materiais e o contexto social que configurava este debate eram bastante diferentes.
“ a Educação Especial não chegou, entre nós, a ser afetada por determinados problemas que se puseram ou podem encontrar em países mais desenvolvidos e que consistem no exagerado tecnicismo com que a criança com deficiência foi encarada, levando a uma excessiva discriminação por categorias e a interferência de inúmeros profissionais no seu processo educativo..” ( Bernard da Costa; 1981)
Um elemento importante a considerar é que naqueles países, o problema da educação em regime de integração ou segregação, era debatido em torno do currículo e aos meios de acesso ao mesmo. Em Portugal este debate sobre o “que” educativo era muito precoce se não mesmo ausente ainda, porque os educadores tinham sido socializados no interior de um sistema educativo altamente centralizado, em que a reprodução social e ideológica era assegurada exactamente através da uniformização do currículo oficial e da regulação da sua aplicação local.
A orientação pedagógica que propunha a elaboração e contratualização de Planos e Programas Educativos individuais, estruturados por áreas desenvolvimentais e de competências avaliadas individualmente, parecia tão difícil de implementar como a organização das práticas e dos recursos educativos segundo o modelo conceptual desenvolvido no Warnock Report. Os recursos disponibilizados para o ensino especial não permitiam responder ao número crescente de alunos encaminhados para o ensino especial, por dificuldades de aprendizagem ou de comportamento.
Naquele mesmo período, em outros pontos do sistema educativo a manutenção das taxas de repetência e abandono escolar justificava a afirmação de que “a Escola portuguesa se dirige ao aluno médio idealizado, ignorando deliberadamente os antecedentes, hostilizando se não mesmo punindo as crianças diferentes”( Rau;1981).
Enquanto que num ponto do sistema educativo se discutia a legitimidade dos processos de encaminhamento das crianças para meios que manteriam as crianças separadas da comunidade e com acesso mais ou menos condicionado à confluência da vida comunitária, no outro discutia-se como manter as crianças na escola, cumprindo a obrigação pública de democratização das oportunidades sociais através da educação a todas as crianças.
Esta tensão contraditória foi vivida pelo grupo base do Movimento de Águeda que participou activamente na discussão sobre as implicações do “rótulo” na integração social das crianças como problema moral prático. Defrontava-se também com a situação de marginalidade de algumas crianças que eram mantidas fora escola, até que o atestado de deficiência pudesse requalificá-la como aluno com necessidades educativas especiais.
Em muitos momentos, os profissionais se sentiram pressionados e constrangidos pela exigência de utilização de linguagens, procedimentos e instrumentos pedagógicos e administrativos que obedeciam a um modelo externo que, para mais, dificultava o diálogo com os pais e com outros parceiros habituais da comunidade.
Para manter a dinâmica integrada e integradora de actores e acções que respondiam aos problemas das crianças, das suas famílias e das escolas, o grupo base teve que resolver muitas contradições resultantes da sua inserção no subsistema de educação especial, enquanto parte de um sistema educativo que se ia definindo por pareceres e políticas internacionais.
A Construção de espaços de reconhecimento entre grupos subordinados
Em 1985 o grupo confrontou-se com a necessidade de suportar algumas contradições com a sua própria filosofia de intervenção para poder responder a mais de 200 crianças que, estavam sinalizadas para apoio da Educação Especial. As dificuldades de ensino da maioria destas crianças eram atribuídas a possíveis disfunções psicológicas das mesmas. O que era pedido ao grupo do movimento era que traduzisse como problema individual o que reflectia a dificuldade que os professores sentiam em manter todas as crianças implicadas em aprendizagens que deveriam ocorrer ao mesmo ritmo e com os mesmos conteúdos e que se impunham pela exigência de cumprimento estrito de regras por todo o grupo e por todos os grupos da escola. Caso contraries, estas crianças, que pertenciam maioritariamente a famílias que ocupavam as piores posições sociais na comunidade e que tinham menores condições de vida e de acesso às oportunidades que a escola se propunha a oferecer a todos, seriam privadas do direito à educação pelo grupo havia lutado na década anterior.
Em 1986, um estudo desenvolvido pelo grupo sobre as causas da mortalidade infantil em Águeda, denunciava o isolamento e o abandono em que viviam as famílias destas crianças, que sustentavam as taxas de mortalidade, de morbilidade infantil e de risco social a descoberto dos serviços da Comunidade.
Assim, entre 1982 e 1989 o grupo arriscou construir uma relação diferente com as cerca de 500 crianças que viviam situações difíceis e prolongadas de insucesso e absentismo escolar. Para evitar atestar como deficiências o que eram dificuldades dos professores e da escola e necessidades de atenção e de ensino das crianças, os educadores mais implicados com o movimento começaram a trabalhar com estas crianças fora do tempo da escola.
Estes educadores usavam o seu tempo e recursos de intervenção para reunir e descobrir com estas crianças, como ajudar outras que ficavam sozinhas a trabalhar e a cuidar dos irmãos mais novos em casa ou na rua. A ideia de criação de grupos de amigos e de soluções para as barreiras que os impediam de aprender na escola o que queriam saber para participar na comunidade, foi sendo comunicada, criança a criança, através do diálogo ocasional com as que eram reconhecidas na escola, por dificuldades em fazer amigos ou em aprender.
Os educadores da Equipa de Educação Especial passaram a marcar encontros e a desenvolver actividades cada vez mais sistemáticas, mas procurando apreender o que para elas era mais significativo do ponto de vista dos grupos que se iam constituindo a cada semana. Ocupando lugares descobertos por elas ou com elas, nas suas comunidades, os educadores foram ajustando as suas estratégias às condições de casas velhas abandonadas, de coretos das festas e também de átrios das escolas, de salas de espera dos centros de saúde ou de salões das Juntas de Freguesia.
A actividade de muitos destes grupos consistia na preparação conjunta de refeições para as crianças que ficavam sozinhas com os irmãos menores, na organização de festas e encontros com outros grupos. Alguns aproveitavam o material de desperdício das fábricas onde os pais trabalhavam e transformavam este material em recursos para a angariação de fundos para fazer melhorias na sala onde reuniam ou ainda para concretizar algumas actividades. A dinâmica e a inserção destes grupos na confluência da vida comunitária, criou condições para o envolvimento dos pais e de outros actores locais que não faziam parte dos notáveis do lugar.
Mais uma vez foi importante a visibilidade deste trabalho, construída por estudos universitários e por seminários e encontros locais.. Criou-se, assim, uma outra base social que abriu espaço para o reconhecimento social local dos grupos e para a negociação de recursos e de possibilidades de enquadramento jurídico, administrativo e social da acção que se ia consolidando como trabalho social. Em 1993 estes grupos deram origem a nove novas associações que passaram a garantir atendimento à infância, com prioridade a crianças e famílias em desvantagem e às zonas mais desfavorecidas do Concelho. Os educadores destas instituições estão hoje organizados numa rede que inclui muitos outros Centros sociais infantis e profissionais de serviços de Saúde preocupados com assegurar a atenção e apoio a todas as crianças do Município.
Quando analisamos o percurso e a narrativa da intervenção do Grupo de Águeda, podemos apreender o quanto foi importante a oficialização da sua acção pela criação da Equipa de Educação Especial. No entanto, esta inserção teve custos. À medida em que se integraram como agentes do sistema educativo, que nos anos 80 entrou no período de normalização, a sua acção se foi tornando permeável a discursos que sugeriam práticas que, por sua vez , requeriam um modo de pensamento e também recursos que o Estado Providência não podia prover em Portugal.
A recusa de situar as causas das dificuldades escolares adentro de crianças, tornou-se um problema difícil de resolver entre subsistemas que dividiam entre si a responsabilidade pela educação de crianças portadoras de deficiência, crianças portadoras de necessidades educativas especiais e de “todas as crianças”. Por outro lado, a própria linguagem e os procedimentos de que dependia a possibilidade de mobilização de cada tipo de serviço ou dos recursos de apoio sócio-educativo, tornavam ainda mais visíveis e pronunciáveis as “diferenças” das crianças que a comunidade, as escolas e por vezes as próprias famílias, rejeitavam e sancionavam negativamente, como obstáculos a integração. À medida em que os programas educativos individuais passaram a ser construídos segundo a lógica de uniformização de procedimentos e de critérios de avaliação, o Grupo foi sendo confrontado com uma série de contradições por si resolvidas e foi mantendo a consciência de que corria alguns riscos.
O que a narrativa do Grupo de Águeda nos dá conta é de que, estando embora consciente dos riscos inerentes à criação de espaços de inclusão para os grupos que a comunidade designa como excluídos para os integrar como seus, esta foi a solução encontrada para fazer face ao efeito de muitas outras relações que se definiam em outros espaços estruturais relativamente dependentes do sistema económico e das relações inter-Estados.
Num momento em que a retórica social se socorre do conceito de Escola Inclusiva para ocultar a desigualdade estrutural que se traduz em desigualdades de oportunidades entre crianças na escola e em que se encaminham as crianças para serviços sociais e educativos periféricos ao sistema educativo, enquanto se investe na “excelência acadêmica” ou no ensino de competências que visam a concorrência no mundo laboral, importa tomar aqui as palavras de uma pessoa cuja trajectória incorpora toda a luta entre progressos e retrocessos no modo como a sociedade portuguesa investe a educação das pessoas portadoras de deficiência:
“ o que não é possível é aceitar uma educação inclusiva que não contemple as características fundamentais que a caracterizam: a escola para todos; que não rejeite nenhuma criança da sua área de intervenção; que não se assuma como primeiro passo para a inclusão social; que não olhe a diversidade de barreiras que se podem opor à participação na aprendizagem e sobre as formas de as poder superar; sem o enquadramento de todas as crianças num grupo heterogéneo e, em simultâneo, um atendimento à especificidade de cada uma; sem o reconhecimento de que o centro da intervenção pedagógica se situa na escola e nas estratégias de sala de aula e que não é possível relegar alunos para outros sectores tal como o sector social” ( Bernard da Costa; 2004).
O que este grupo encontrou, através da exploração das margens de liberdade e de autonomia procuradas no entendimento das contradições assumidas, partilhadas e enfrentadas na relação com múltiplos atores sociais, posicionados em diferentes escalas de ação social da Comunidade e do Estado, foi a possibilidade de transformar, crítica e efectivamente, os recursos que eram providos para a Educação Especial, em contextos sociais animados por subjectividades individuais e colectivas que tornaram a Educação Especialmente Inclusiva. Inclusiva das inúmeras diferenças que enriquecem a possibilidade de nos construirmos como Comunidade humana, contra o risco de mercadorização da vida!
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1 Bela Vista era o nome deste Jardim-de-infância, que foi sendo desenvolvido como Centro de Educação Integrada, um pouco na continuidade da integração de algumas crianças com atrasos graves iniciada num pequeno espaço para a infância numa das localidades do Município.