domingo, 18 de outubro de 2009

JOÃO DA MALHA (Poema em verso, mais tarde posto em prosa)- por Mário Simões Dias

O sol já se aproxima do poente,
Quando, ronceiro,
Quase aderente ao solo em que caminha,
João da Malha sobe lentamente
Pelo carreiro
Da Pedruguinha.
.
Leva a enxada ao ombro e, de olhar fito
Num ponto vago
Do infinito,
Seus olhos são batel que se perdeu
No grande lago
Azul do céu.
.
Ao chegar à courela,
Para um segundo;
Depois,com modos bruscos,agitados,
Empurrando a cancela,
Entra na leira que há bem poucos dias
Ainda era para ele um mundo
De cuidados,
De alegrias!...
.
Entra de manso,devagar,
Como quem vaifazer uma surpresa,
Ou vai para roubar!...
Friamente,olha em roda:
É ela, a Pedruguinha,
A sua leira,sua riqueza...
É ela toda,Toda inteirinha!...
.
Num arremeço,
Para afastar a sugestão que vem,
Como um torpêço,
Da terra mãe,
João da Malha, brusco,Empurra para fora, com a enxada,
O penedo negrusco
Que lhe veda a entrada.
.
“Quem poria aqui isto “?!...
E, fechando a cancela com barulho,
Parece desejar,
Ante o caso banal, mas imprevisto,
Impedir o pedregulho
De voltar.
.
Lento, começa
A caminhar pela vereda estreita,
Aberta ao longo da propriedade,
E, pesadão,
Grave, sem pressa,
Aqui se curva sobre um talhão,
Além ajeita,
Aqui contempla, mais além espreita
As mil promessas da novidade.
.
O sol ainda brilha, ainda há calor,
E, sob a luz que a banha,
A terra, a dar-se toda ao sol ardente,
Ao escaldante amor
Desse amigo distante,
Sente a volúpia estranha
De quem se entrega voluntáriamente
A dois braços de fogo devorante.
.
Amor fecundo,
Volúpia luminosa, enternecida,
Orgulho de sofrer no mais profundo Do seio materno ...
Contentamento da missão cumprida,
Renovo eterno
Da mesma vida!...
.
João da Malha
Não sabe definir tudo o que sente
E a terra lhe sugere;
Mas qualquer coisa que no ar se espalha
E que da terra vem,
Fá-lo pensar inconscientemente
Numa mulher
Que vai ser mãe.
.
E começa a lidar.
Por entre as couves altas, devagar,
Não vá tocar nalguma,
A enxada vai abrindo
Estreito rêgo, longo e coleante,
Por onde a água há-de saltar, sorrindo,
Levando a cada uma,
Após um dia sofocante,
Um pouco de seu frescor
Reanimador
E fecundante.
.
E João da Malha
Cisma, enquanto trabalha.
Porque não há-de ser assim?... A terra
Leva tudo o que um homem pode dar,
O trabalho, os cuidados, o suor,
E para lhe arrancar
Aquilo que ela encerra,
O vinho,o pão,
Senhor!...
Quanto martírio e quanta ralação!...
.
E depois, melindrosa que ela é!
..
Hoje p.rometedor e
Como um sorriso de criança,
Amanhã, quem a viu e quem a vê!
Porque caíu geada,
Porque o vento soprou, ei-la mudada,
Perdido numa hora,
Um ano de esperança!...
.
É o mildium na uva,
É a moléstia a dar nos batatais...
O bicho que roi tudo e tudo estraga...
A seca... a chuva...
A neve... os vendavais.,
.
Que às vezes também são behttp://www.blogger.com/img/blank.gifm boa praga!...
.
.
Ainda o ano passado,
As oliveiras a vergar ao peso
Do fruto já vingado,
E nisto vem um vento de tal raça,
Um furacão tão tezo,
Que deitou tudo abaixo!... Uma desgraça!...
.
E é isto a vida de quem sacha e cava
E rega e lavra e monda
E revolve hora a hor a terra ingrata!...
Olhos sempre no chão, vontade escrava
Da terra,que não sabe dizer bonda
A quem a amanha e trata.
.
Sempre uma lida insana!
Sempre a espinha dobrada
Sôbre a enxada,
Ou sobre a foice, quando a ceifa aponta!
E sempre a mesma cabana,
Sempre a mesma telha vã,
O mesmo caldo, e sempre incerta a conta
Do que se tem para amanhã!...
.
Os gozos onde estão?...
É só à noite uns dedos de cavaco
À porta da loja
Do Zé do Paleio,
Ou então,
Quando um homem se arroja
A perder um pataco,
Uma bisca lambida ou um sete-e-meio...
.
E daqui não se sai!
É como a roda do rio
Sempre na mesma cantiga.
O filho faz o que fazia o pai,
Sem uma fuga,sem um desvio,
Sem uma queixa pela fadiga.
.
Raio, que vida esta!
Até um homem deixa de ser homem,
Para ser uma besta,
Impassível diante do que sente,
Das mágoas que o consomem
Ininterruptamente!...
.
Solene como um rei, o sol declina,
Mas tão manso, tão sem pressa,
Que a gente imagina,
Ao vê-lo baixar,
Que o sol já começa
A sentir pena de nos deixar.
.
Em baixo, as casas da aldeia
Espalham-se no vale extenso e aberto
Ao ar e ao sol
E, mais além, num zig
-zag incerto,
A estrada nova coleia,
Lembrando gigantesco caracol.
.
Há manchas na paisagem,
Manchas amarelinhas de trigais
Em terras baixas de regadio,
Manchas verdes de folhagem,
O verde claro dos olivais,
O verde escuro dos pinheirais,
Grave e sombrio.
.
E ainda o verde tenro, amarelado,
Das vinhas que, com graça luninosa,
Trepam encosta arriba,
Mostrandoos cachos de ouro ao sol dourado,
Como dozela vaidosa
Que seus enfeites exiba.
.
Pelas altas montanhas,
Onde, por entre pedras calcinadas,
Nem musgo rasteiro espreita
Ou deita
Sua breve penungem,
Por essas terras altas, desoladas,
Há largas manchas castanhas
E velhos tons de ferrugem.
.
Mas a paisagem ri suavemente
E canta sob o sol que tudo alegra
E tudo acaricia.
Só João da Malha,olhando a terra, sente
Que a vida é negra,
Negra e sombria!...
.
............................................................................................
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Alegre, verdejante, sossegada,
A Pedruguinha,
A meio do outeiro,
Fica em poial risonho alcandorada,
Como avezinha
No seu poleiro.
.
Não é grande, isso sim!...
Mas faz milagres o amor de quem
Trabalha no que é seu,
E assim,
A Pedruguinha amanhada,
Bem sachada,
Bem lavrada
Por quem a vida lhe deu,
Tem os aspecto de alguém
Que quiz pagar com bençãos todo o bem
Que recebeu.
.
Nela, ou por milagre ou por encanto,
O suor fez-se planta, fruto e flor,
A humildade vitória,
A luta canto,
E o gesto rude, para sua glória,
Benção e graça do Senhor.
.
Nela, tudo sorri,
As folhas largas como mãos abertas,
Que do cuval se estendem,
As longas vagem que pendem
Das vara dos feijoeiros,
As bojudas abóboras, que ali
Lembram calvas cabeças descobertas,
E os próprios rubros tomates
São risadas escarlates
Que irrompem dos tomateiros.
.
Ao canto do poial,
Robusta, musculosa, quase atlética,
A despeito de um ar suave de avozinha,
A figueira negral
Empresta certa estética,
Imprime certo tom patriarcal
À Pedruguinha.
.
E gentil, altaneira,
Ao ventozinho leve que começa
A soprar sorrateiro,
Um campinho de milho ondula,ondeia
E agita sorridente uma promessa
Em cada espiga cheia.
.
João da Malha
Conhece há muito tempo esse recanto;
Por lá brincou petiz
E, homem feito, já por lá trabalha
Há muito ano
Num labor insano,
Amanhando,
Sachando,
Semeando,
Levando a cada canto
A vida a uma semente, a uma raiz.
.
De tanto ver no solo projectada
A sombra do seu vulto,
Como figura animada
A repetir-lhe os gestos vigorosos,
Há dentro dele o sentimento oculto,
A secreta noção
De que os traços sinuosos
Da sombra que o retrata, muda e calma,
São, no solo que ele ama, a projecção
Do seu ser, em corpo e alma.
.
Na terra que cultiva,
Algo da sua vida se insinua
E se renova nas espigas cheias,
Alguma coisa bem viva,
Cuja vida já foi sua,
Sangue que já correu nas suas veias.
.
Por isso, limitada a aspiração
Da sua vida ao chão que lhe sorri,
Correm-lhe os dias naturais, felizes,
E sente-se irmão
Das plantas que ali
Colheram raizes.
.
Agora, porém,
Alguma coisa dentro dele existe
Que o faz olhar a terra misteriosa
De diversa maneira,
Alguma coisa o detém,
O traz alheio e triste,
O livra da atracção, tão poderosa,
Com que a terra o prendeu a vida inteira.
.
Constante sobresslato
Faz-lhe da vida frágil batelinho
Em luta no mar alto,
E a estrela cintilante,
Que do norte o guiava no caminho,
Como astro bendito,
Vagueia agora, fugitiva, errante,
Perdida no infinito.
.
Outrora
Seguia confiante a sua estrada,
Única aberta sob um sol de festa;
Agora
Vê-se diante de uma encruzilhada,
Sem decisão para tomar por esta
Ou por aquela estrada.
.
E contudo,
É preciso fixar-se, dar um norte,
À vida que não para,
E não cruzar os braços... sobretudo
Ter coragem, ser forte
E olhar a vida em frente, cara a cara.
.
E João da Malha, João da Malha
Cisma, enquanto trabalha.
.
Após imagem desenterra imagem,
Sucedem-se lembranças
De mil castelos que no ar ergueu;
É toda uma paisagem
Que dentro dele se estende e desenrola,
Num agitar confuso de esperanças,
De saudades da vida que viveu,
Fumo que ao longe se evola.
.
Porém, a sobrepor-se a tudo quanto
Sua lembrança evoca,
A afagar-lhe os desejos, a ambição,
Surge lá lomge, tentadora, envolta
Em misterioso encanto,
A terra da tentação,
A terra ardente, cuja luz sofoca,
Mas cujo seio, a abrir-se em pomos loiros,
É uma torrente à solta,
Um perpétuo jorrar de mil tezoiros!...
.
O Brasil!... O Brasil!...
O mistério, o país maravilhoso
Que as espumas ocultam!...
Como nos longes seus tesoiros mil,
Fazendas, cafèzeiros, sol radioso,
Aos olhos dele avultam!...
.
Muitas vezes ouvira já falar
Nesse caudal gigante que parece
Que no há-de ter fim!...
Mas até lhe custava acreditar
Que no mundo houvesse
Uma terra assim!...
.
Mas era verdade!
Ele bem vira, com seus próprios olhos,
Como o Cristiano do Sobral voltara:
Ar de cidade,
Notas aos molhos,
Um cheiro a rico de virar a cara!
.
Sempre bem posto,
Bem preparado,
Dedos cheios de aneis, Um riso de quem anda bem disposto,
E então tratado
Que nem os reis!...
.
Boa gravata ao pescoço,
Boa bota de verniz,
De polimento ou lá que raio é!...
Enfim, um brasileiro, um ricalhoço,
Que, pelo que se diz,
Nem sabe ao certo quanto tem até!...
.
Já se sabia que ele estava bem.
Ainda antes de vir,
Comprara o terreno da Ínsua da Vasa,
Que o Rasca vendera por não ter vintém!
E agora o Cristiano já dissera
Que ía construir
Uma grande casa,
Como ninguém na aldeia inda tivera!
.
Que tal seria a casa, era de ver!
Alta, caiada,
Varandas corridas,
E lá por dentro salas e mais salas!...
E ele, João da Malha, sem poder
Largar a enxada
Sempre amarrado à mais ruim das vidas,
A sofrer, a roê-las, a amargá-las!...
.
E tudo porquê ?
Porque não fôra, como o Cristiano,
Capaz de arremeçar consigo até
À outra margem do largo oceano.
.
Tudo porque deixara
A rotina lançar-lhe aos pulsos duros
Apertada cadeia
E porque desde então assim ficara,
Preso por ela, dentro dos muros
Da sua aldeia.
.
Forte imbecil!...
Sempre amarrado ao mísero torrão,
Feito escravo de todos!... Que papalvo!...
E o Brasil, o Brasil
Ao alcance da mão,
Que era só resolver-se e estava salvo!...
.
E afinal porque não se resolvia?!...
A todo o tempo é tempo de emendar
Um disparate, um erro!
Deitaria consigo, deitaria!
Era novo, sabia trabalhar,
Tinha uns braços de ferro.
.
Para a passagem, isso é que e
ra pior!...
Mas que diabo,
Não fosse outro o torpeço!...
Não tinha a Pedruguinha o seu valor?...
Vende-la-ia, pois então, e ao cabo,
Compraria mais terras no regresso.
.
Vendê-la-ia, sim,
E o que de lá mandasse em cada carta
Que escrevesse à mulher,
Raios a partissem se, enfim,
Não chegasse à larga,à farta
Para a tropa cá viver!...
.
E João da Malha,
Vendo-se já na terra abençoada
Das riquezas sem conta,
Já consigo sorria:
“Adeus, vida infeliz de quem trabalha!...
Adeus, alvião!... Adeus enxada” !...
A sua decisão estava pronta:
Iria.
.
.......................................................................................
........................................................ .
Cansado de cismar,
Reparando que o sol ía fugindo,
Que se acabava o dia,
João da Malha deixara-se tombar
Sobre uma pedra, a saborear, sorrindo,
A vida que antevia...
.
Em roda,
Uma paz suavíssima,discreta,
Descia sobre a terra toda
E, docemente,
Suavemente,
A tarde,com seus últimos lampejos,
Serena, quieta,
Fôra subindo pela vertente
E agora, presa nos altos cumes
Por fios breves, quase a quebrar,
Procurando outros céus a que se acoite,
A tarde, doce como os perfumes
Que andam no ar,
Mandava à terra seus mil desejos
De boa noite.
.
E a noite pelo vale,
Com levezas carinhosas,
Toda desvelo, quase amternal,
Já começava pousando
Sobre o fundo das quebradas
Seus novelos de sombras silenciosas,
Que apouco e pouco se iam desdobrando,
Desapertando
E avolumando,
Como compridas meadas
Desenroladas.
.
E nesse aproximar de sombra e luz,
Ambas suaves, ambas esbatidas,
Passa uma branda ternura
Que envolve, que alicia, que seduz...
Como se luz e sombra, assim inidas,
Tão serenas e calmas,
Espalhassem mais paz e mais doçura,
Mais quietação sobre as almas.
.
Mansa e mansa,
Como gotinha de água presistente,
Que teima em fazer branda a pedra dura,
Essa paz envolvente,
Respiração da terra que descansa
Em suave torpor,
Entra, penetra, acaricia e espalha,
A pouco e pouco, um singular frescor
Na alma obscura
de João da Malha.
.
E a noite cai.
A luz,cada vez mais esmaecida,
Cada vez mais distante,
É como nota perdida
Que se esvai,
Toda em ecos diluída,
Toda em suspiros de agonizante.
E João da Malha, pleno de esperança,
Sonha, enquanto descansa.
.
Uma voz doce como voz materna,
Baixinha e segredante,
Desprende-se de tudo o que o circunda,
Sombra de voz, macia e terna,
Que vem, sabe-se lá!... da luz... do instante...
Do céu... da terra... do espaço...
Sabe-se lá!... mas que de paz o inunda
E o toma todo, co
mo um longo abraço!...
.
.
A princípio não sabe donde parte
Esse fio de voz;
Parece-lhe que vem de toda a parte
E de parte nenhuma,
Num sussurrar de estranhos fala-sós,
Embuscados, ocultos pela bruma.
.
Depois, pouco a pouco, a voz ressalta
Do silêncio, mais nítida, mais clara,
Mais alta,
Num segredar nenos incerto,
E João da Malha então repara
Que a voz lhe fala ali bem perto:
.
“Ouve, João da Malha, escuta um pouco:
A noite desce por sobre nós;
Que funda mágua a minha!...
Não sabes quem te fala? Pobre louco!...
Já não conheces a minha voz,
A voz da tua amada Pedruguinha!...
.
Há meia hora que chegaste aqui,
E, enquanto trabalhavas,ou fingias
Que trabalhavas, distraído e lento,
Fui procurando decifrar em ti
O enigma que escondias
No fundo do pensamento.
.
E decifrei-o,
Mas como decifrá-lo me custou,
Me encheu de mágua e de receio!
Como cada raiz em mim cravada
Se contraíu de espanto e se quedou
Entristecida, pasmada!...
.
Pois quê, vais-nos deixar?!...
Vais cortar esse laço que nos liga
Há tantos anos?... Senhor!...
Como se pode assim despedaçar
Uma união tão funda e tão antiga,
Sem tremer de pavor?!...
.
Há quantos anos, quantos, aqui vinhas
Todos os dias, sem faltar nenhum,
A rodear-me sempre de cuidados!
E que cuidados tinhas,
Não fosse faltar-me algum,
Nos dias próprios, de antemão marcados!...
.
Eu já sabia:
Se o sol em agosto me abrasava em fogo
E me tomava a sede angustiante,
A tua enxada surgia,
Solícita,abrindo logo
Caminho ao veio de água refrescante.
.
E quando, findo aquele esforço ingente
De produzir mil frutos, me quedava
Exausta, ao cabo da missão cumprida,
A tua mão deligente
Logo vinha e me estrumava,
A dar-me força nova e nova vida.
.
Por isso me entregava toda inteira
A cumprir meu destino, satisfeita
De o ter tão alto e tão nobre,
E sofria, e lutava de maneira
Que no dia festivo da colheita,
Nesse ao menos, tu fosses menos pobre.
.
Com que profundo orgulho,
Com que estremecimentos silenciosos
De um amor ignorado,
Te via, triunfante, ao sol de Julho,
Erguer as mãos e, nelas, gloriosas,
Os frutos que só eu te havia dado!...
.
Era um encantamento,
Uma hora de comoção, Para mim, a da ceifa!... Num momento,
As foices, vibrando,
Cortavam então
Espigas que de há muito, sem cessar,
Eu vinha criando
Só para tas dar!...
.
Nem tu calculas a ternura imensa
Com que eu alimentava, dia a dia,
Cada humilde semente,
Sem aspirar a outra recompensa,
Além da alegria
De te ver contente!...
.
Mas como o tempo foge!...
Como tudo se extingue, se desfaz
Por sob o azul dos céus!...
É breve e fugitivo o dia de hoje!
Como tudo é fugaz,
Neste mundo de Deus!...
.
Tudo afinal acaba! De hoje em diante,
Não mais procurarás tornar a ver-me,
Para que eu te não lembre a minha dor;
Eu ficarei esperando instante a instante,
Passiva e enerme,
O dia em que hei-de ser de outro senhor.
.
Como isto me apavora!...
Como a separação que se aproxima
Me faz estremecer!...
Dentro de mim, cada raiz te chora,
Cada semente obscura se lastima
Da vida que vai ter!...”
.
Cala-se a voz da terra angustiada.
Em volta, a noite, abrindo longamente
Suas asas de sombra,
Ficara absorta, parada,
Suspensa dessa voz que, pungente,
Até a própria escuridão assombra.
.
Atentas sentinelas
Espalhadas nos céus silenciosos
Como dourada poalha,
As primeiras estrelas
Parecem olhos a espreitar, ansiosos,
O pobre João da Malha.
.
E João da Malha sente aquele olhar,
Sente que tudo em roda
Espera seja o que for,
E parece esmagá-lo esse esperar
Da terra toda
Em redor!...
.
Sùbitamente,
O atavismo de trinta gerações,
Que da terra viverm dia a dia,
Acorda nele o grande amor latente
Que, como brasa a arder sob tições,
Dentro dele existia.
.
“Tens razão, Pedruginha!
Como pude eu alimentar a ideia
De um dia te deixar?!...
A tua vida está ligada à minha;
Somos dois elos de uma cadeia,
Não nos podemos separar”!...
.
E enquanto os astros sobem no horizonte,
João da Malha,
O heroi obscuro, o eterno lidador,
Põe-se a caminho, levantando a fronte,
Como no fim de uma batalha
Um rei que fica vencedor.
.
.
Coimbra, 31-12-1940

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