terça-feira, 9 de janeiro de 2007
segunda-feira, 8 de janeiro de 2007
Mário Simões Dias
LISBOA – LOURENÇO MARQUES
DIÁRIO DE BORDO
Ó mar largo, ó mar salgado,
De onde te vem tanto sal?...
Vem das lágrimas choradas
Nas praias de Portugal !...
(Popular)
Lisboa 11 de Junho.
I
EMBARQUE
11 de Junho, terça feira. Marco
Com esta data o dia da partida.
Subi há duas horas para o barco
E vivo ainda a dor da despedida.
Tudo isto é ainda novo para mim, que embarco
Pela primeira vez na minha vida.
Julgo-me neto de Gonçalves Zarco,
Pois também levo as ondas de vencida.
Mas vou para mais longe; na viagem,
Hei-de mesmo avistar-me, de passagem,
E no Zaire e no Cabo hei-de mostrar-lhes
O luxo do meu barco e perguntar-lhes:
“Então, que dizem vossas senhorias”?!...
II
MAREANTES
“Então que dizem”!… Rijos marinheiros,
Que em tão frágeis barquinhos se arriscavam,
Com cartas de marear e com roteiros
Que ainda tão longe da verdade andavam!...
Meio experientes, meio aventureiros,
Quantas traições no mar os esperavam!
Mas guiava-os o brilho dos luzeiros
Dos reinos, dos Impérios que buscavam.
Mas eu não busco nada. Impérios vãos,
Se um dia os tive presos entre as mãos,
Foi só para entre as mãos os desfazer.
Reinos, impérios… tudo isso é pó!...
Hoje, Senhor, procuro só
Sete palmos de terra onde morrer.
III
LARGADA
Como a manobra do desatracar
Leva tempo a fazer!... Que lentidão
No recolher dos cabos, no ligar
Das máquinas que gemem no porão!...
Com elas, todo o barco há-de vibrar…
E eu sinto, nessa oculta vibração,
Qualquer coisa de humano a latejar,
Como o bater de um grande coração.
Ó navio das minhas decepções,
Sinto no sangue as tuas pulsações,
Somos irmãos neste momento amargo!...
Pesa-te, eu sei, um coração desfeito!
Que importa o peso que me esmaga o peito?...
Quebra as amarras, vamos! Faz-te ao largo!...
Dia 12
I
MAR ALTO
Neste segundo dia, quarta-feira,
Já não se avista terra da amurada.
A paisagem fatiga, é uma canseira…
Só mar e céu, só mar e céu, mais nada!...
Sente-se a gente como prisioneira
Destes cem metros em que faz jornada.
E há aí quem passe nisto a vida inteira!
Pobre gente do mar, sempre isolada!...
Só, no meu camarote, não resisto:
Sucumbo à nostalgia, a tudo isto,
Sem nada em que me apoie ou me concentre!...
Lanço-me sobre a cama, como um feixe,
E julgo-me engolido por um peixe
Enorme, que me leva no seu ventre.
II
O NAVIO
Percorro palmo a palmo, passo a passo,
De estibordo a bombordo, à popa e à proa,
Este gigante de madeira e aço
Que apita e geme e ronca e vibra e soa.
Um mundo flutuante!.. E enquanto faço
A todo o barco uma inspecção à-toa,
Esse monstro que vence tempo e espaço
Enche de espanto a minha vil pessoa.
Entro em salas de música, de fumo,
Descubro, neste vaguear sem rumo,
Salões, espelhos, lojas e piscinas.
E pasmo de pensar que tudo isso
É posto pela técnica ao serviço
Das nossas vidas pequeninas!...
III
SAUDADE
Tudo ficou à popa do navio!...
Tudo ficou nesse torrão sagrado,
Onde lavrei a terra ao sol de estio
E um reino tive de luar banhado!...
Lá me correu a vida como um rio
Que vai descendo para o mar salgado
Bucólico hoje, como argênteo fio,
Amanhã tumultuoso e revoltado.
Lá te deixei a ti, ó doce fada,
No silêncio da última morada
Que pude erguer-te, ansioso e comovido!...
Possa eu algum dia regressar
E vir, junto de ti, continuar
O nosso belo sonho interrompido!...
Dia 15
I
ESCALA
Parámos esta noite no Funchal;
Vinhos, bordados, bons hotéis, turismo,
Móveis de verga, clima sempre igual,
Cor regional e cosmopolitismo…
Eis um belo cartaz que, por sinal,
Não falseia a verdade, o realismo.
Tudo se encontra nesta terra ideal…
Bênção de Deus a emergir do abismo!
Mas a ilha possui outra beleza
Além daquelas, a da natureza
Abrupta e forte, primitiva e crua.
Outra beleza, sim, porque afinal,
A estranha força da beleza é tal
Que até no próprio horrível se insinua.
II
SANTO ANTÒNIO
13 de Junho, Santo António. A gente
Lembra este dia com especial ternura;
Só é pena que o faça unicamente
Em lembrança, em saudade, em fé segura!...
Não podemos correr, infelizmente,
António, ao teu encontro, ir à procura
Da tua festa colorida, ardente…
Pois vamos em regime de clausura.
Mas tu podias vir ao nosso barco,
E nós embandeirávamos em arco,
Para te receber com mil carinhos!...
Vem, e verás que não te falta nada,
Pois se quiseres, curvado na amurada,
Até podes falar aos teus peixinhos!...
Dia 14
I
O VELHO RELÓGIO
Ó meu velho relógio de parede,
De badaladas lentas e sonoras!...
Neste mundo de Deus tudo se mede,
Até a vida, que se mede em horas.
Horas de sonho, de ambição, de sede
De glória, de renuncias redentoras,
Quantas, velho relógio de parede,
Por mim bateste, lentas e sonoras!...
Hoje, sozinho, - como a vida é vária!...-
Solitário nesta casa solitária,
Cumpres talvez ainda o teu dever:
Paraste, mas quem sabe se, ao parar,
Não ficaste marcando, sem a dar,
A hora em que algum dia hei-de morrer!...
II
EXERCÍCIO
A sereia tocou subitamente,
Seis toques breves, outro prolongado;
Campainhas de alarme, febrilmente,
Puseram-se a vibrar por todo o lado.
Das cadeiras de bordo toda a gente
Se levantou de pronto. Alvoroçado,
Todo o barco surgiu rapidamente,
Cinto de salvação bem apertado.
Todos, os da segunda, os da terceira,
Correm buscando a sua baleeira,
Num movimento novo, extraordinário.
Neste mundo, em que a gente se aborrece,
Que seria de nós, se não houvesse,
De quando em quando um perigo… imaginário?!...
Dia 15
I
CAMAROTE 23
É um belo camarote, este que habito:
Primeira classe, chão atapetado,
Óptimas camas, ar condicionado
E o resto à altura do que fica dito.
O ruído das máquinas, do apito,
Chega-me aqui bastante atenuado.
É bom viajar assim, bem instalado,
Mesmo que o coração se sinta aflito.
Tenho o meu maple, a minha escrivaninha,
Uma sala de banho que é só minha…
Chego quase a esquecer o mundo externo.
Mas porque vou tão confortavelmente?!...
Ora, porque há-de ser? Naturalmente,
Porque viajo à custa do Governo. ?!...
II
PRIMEIRO NOCTURNO EM LÁ MENOR
Não me digam que não! Eu não sonhei!
Eu estava acordado àquela hora!
Era uma voz estranha, a que escutei
E me parece ouvir ainda agora.
Dir-se-ia um fio de ouro, ouro de lei,
E aquela voz nocturna, sedutora,
Vinha do mar, das ondas, que eu bem sei
Que o mar às vezes também chora.
Era o mar que cantava, ou talvez fosse
Uma sereia harmoniosa e doce
Uma sereia das que havia antes!...
Uma sereia, sim, uma daquelas
Que iam, cantando, atrás das caravelas,
Encorajando os nossos navegantes!...
Dia 16
I
ANIVERSÁRIO
Hoje foi dia de anos, mas, é claro,
Ninguém no barco o soube, além de nós.
Fizemos brindes, e com vinho caro,
Mas baixinho, em segredo, a meia voz.
Fazer anos a bordo é caso raro,
Por isso os festejámos, mesmo a sós.
Olhai, amigos, não façais reparo,
Pois brindámos também por todos vós.
Sobre as águas do mar, longe daqueles
Que vivem para nós a toda a hora,
Tal como nós vivemos para eles,
Que há-de a gente fazer nestes momentos,
Se não ir procurá-los, mar em fora,
Pela ponte dos nossos pensamentos?!... ?!...
II
POST-SCRIPTUM
Era tão bom guardar este segredo!
Tem um sabor tão doce a intimidade!...
Mas tudo e mundo espreita e, tarde ou cedo,
Vem sempre a descobrir a novidade.
Por mim, tal vigilância faz-me medo!
Mas que tem isso, enfim, se, na verdade,
Não houve meio de guardar segredo
E todo o barco soube a novidade?...
Surgiu um bolo de anos ao jantar,
Que o comissário fez confeccionar,
E música a propósito no fim.
Houve palmas também e a festejada,
Do seu lugar, sorriu, lisonjeada;
Gostou e, se gostou, foi bem assim. ?!...
Dia 17
I
A BORDO
Esta vida de bordo é curiosa!
Ontem ninguém aqui se conhecia;
Hoje sabe-se a história minuciosa
De cada membro desta confraria.
A vida, essa decorre descuidosa,
Desocupada, inútil e vazia,
Cada hora a escoar-se vagarosa
E cada dia igual a outro dia.
Todos trazem nos lábios um sorriso,
Como se o barco fosse um paraíso,
Um berço a balouçar, fofo e macio.
Contudo, só Deus sabe quantas dores,
Quantas angústias, quantos dissabores,
Quantos dramas irão neste navio!... ?!...
II
O PEIXE DE AÇO
Não sei porquê, não me abandona a ideia
De que este barco é um peixe colossal,
Maior que um tubarão, que uma baleia,
Um peixe enorme, todo de metal.
Um dia, ao ver-me passear na areia,
Engoliu-me no mar de Portugal
E nada agora, de barriga cheia,
Como quem volta de um festim real.
Nas entranhas do peixe, sua presa,
Fui afinal vítima indefesa
De tão insaciável apetite.
Mas não luto, não grito, não reajo;
Espero só que o monstro em que viajo
Se aproxime de terra e me vomite. ?!...
Dia 18
I
LINHA IMAGINÁRIA
O senhor comandante anunciou
Que havia festa no salão de bordo,
E logo toda a gente se animou
E toda agente se mostrou de acordo.
Até o próprio barco se alegrou,
Metálico e pesado, inchado e gordo.
E logo para p baile se ensaiou,
Ora dando a estibordo, ora a bombordo.
É que passamos hoje o equador.
Heróicos marinheiros do passado,
Quanto devemos nós ao vosso esforço!...
Logo vai haver festa, luz e cor;
Mas ninguém pensa
E que vergonha eu sinto! Que remorso!... ?!...
II
CALMARIA
Eis-me nas águas já de outro hemisfério,
Eis-me seguindo a rota dos heróis
Que foram construindo o nosso império
À luz de outras estrelas, de outros sóis.
Lutando pela fé contra o mistério
Da linha que partia o mundo em dois,
De muitos este mar foi cemitério
E de quantos, Senhor, vindos depois!...
Mas tudo se venceu, ondas, rochedos,
Mistério, escuridão, monstros e medos,
Todos foram batidos ou dispersos,
Para que um dia um poeta de água doce,
Sobre este mar, tranquilamente, fosse
Compondo a vacuidade destes versos.
III
PARÁBOLA DO LAVRADOR
Era uma vez um pobre lavrador,
Que fora envelhecendo humildemente,
A trabalhar a terra com amor
Desde o sol nado até ao sol poente.
Regara o seu torrão com o seu suor,
Mas um dia, já fraco, já doente,
Para o experimentar, quis o Senhor
Que fosse arrotear terra diferente.
“ Senhor, disse o velhinho, em mim se faça
Vossa vontade soberana e forte,
E que ela, até ao fim, seja cumprida!
Mas depois disso, concedei-me a graça
De eu poder ir, Senhor, achar a morte
Na terra em que, por vós, deixo hoje a vida?!...
Dia 19
I
REALISMO
O mar, com seus abismos de voragem,
E o céu, com sua azul imensidão,
São constantes apelos da paisagem
À nossa eterna sede de evasão.
O próprio sentimento da viagem
É uma asa a lançar-me na ilusão.
Desaparece o real, dilui-se a imagem,
Fica apenas o anseio, a aspiração.
Tudo nos chama para o infinito!...
No entanto, o Baco é um âmbito restrito
Que ninguém tente, aliás, ultrapassar.
Chama o céu… chama o mar!...Mas junto a nós,
Cortando a imensa paz, soa uma voz:
“Nunca mais chega a hora do jantar”!...
II
ALEGRIA DE VIVER
Esta senhora gorda e prazenteira
Que a bordo vem desde o primeiro dia,
É a nota mais alegre da primeira,
Pois toda ela é paz e alegria.
Redonda e baixa, tipo vendedeira,
Tem por vezes a sua fantasia:
Anda de calças a manhã inteira,
Sem temer o grotesco que irradia.
Sorrindo sempre à esquerda e à direita,
Inalteravelmente satisfeita,
Dá gosto vê-la, dispõe bem, tem graça!...
Ontem no baile, então, fez sensação,
Quando surgiu, dançando, no salão,
Com um senhor de farta bigodaça!...
III
MONOTONIA
Onde é que o mar acaba? Onde vai ter?
Onde é que fica a terra prometida,
Que vamos demandando sem a ver,
Que iremos demandando toda a vida?!...
Que o nosso mundo é a terra, ouço dizer;
Mas a terra onde está? Anda perdida?!...
Casta noiva que insiste em se esconder,
Em seus líquidos véus toda envolvida.
Há oito dias que só vemos mar!
E sempre esta amurada a limitar
O mundo artificial em que vivemos!...
Temo que esta viagem não acabe!
Vamos gastando os nervos e quem sabe
Se não será por nada que os gastamos?!... !...
Dia 20
I
LUANDA
Foi um regresso à vida esta chegada
Ao porto de Luanda!... Ainda havia
Um róseo balbuciar da madrugada
Na luz e na frescura da baía.
Mas apesar da hora, ainda orvalhada,
Já tudo à nossa volta se movia.
Há no barco uma vida renovada
E, em tudo, mais frescor, mais alegria.
Giram barquinhos na baía quieta,
Os bagageiros são uma mancha preta
Que enche o barco de súbitos contrastes.
E enquanto tudo mexe ao sol e ao vento,
Sinto-me reviver no movimento
Dos negros, das canoas, dos guindastes. !...
Dia 21
SEGUNDO NOTURNO
Ouvindo a água que me embala o sono,
Fui construindo de água o meu castelo,
Castelo singular de um rei sem trono,
Mas rei de um reino estranhamente belo.
Ali hei-de esconder meu abandono
Em líquidos salões tornados gelo,
E o gelo será tal que o sol de Outono
Não logrará fundi-lo ou corrompê-lo
Ali hei-de esconder a minha mágoa
Entre colunas sumptuosas de água,
Que hão-de vencer o tempo, os cataclismos,
Ali hei-de reinar como um tirano,
Ser grande e vil, celestial e humano,
Buscando Deus à tona dos abismos. !...
Dia 22
SCHERZO
Aí vai esta barquinha carregada
De planos de futuro, de esperança,
De sonhos, de ilusões, talvez de nada,
Pois nada é o que jamais se alcança.
Aí vai esta barquinha!... Alvoroçada,
Esta pobre alma humana não descansa!
Se uma quimera vê despedaçada,
Logo atrás de outra, a estremecer, se lança.
No entanto, o mar, que nos conhece bem,
Sorri de tudo isso com desdém
E brinca, enquanto em vagas se arredonda.
“Aí vai esta barquinha”!... E zombeteiro,
Lança-nos de uma para outra onda,
Indiferente, a brincar o dia inteiro. !...
Dia 23
I
MISSA A BORDO
O nosso barco também tem capela
Não muito grande nem de muito estilo,
Mas o que importa, na verdade, é tê-la,
Ter o refúgio de um lugar tranquilo.
Não é grande, talvez não seja bela,
Mas que paz se respira em tudo aquilo!...
A alma sobe e Deus desce até ela,
Vem-lhe falar… E que bem sabe ouvi-lo!...
Todos os dias, sem fazer alarde,
Por duas vezes, de manhã e à tarde,
Um senhor padre ali celebra missa.
Ó mar, socega, vem rezar também!...
Ouve, como eu, a grande voz que vem
Falar de paz, de amor e de justiça!... !...
II
PODER SUPREMO
O espírito de Deus pairou no ar,
O espírito de Deus, omnipotente,
Baixou suave, milagrosamente,
Sobre a perpétua inquietação do mar.
Há pouco ainda, quem pudesse olhar
O largo oceano, rugidor, em frente,
Tê-lo-ia visto, sobranceiramente,
A sua própria força proclamar.
Mas o Divino Espírito baixou,
E toda a terra que o Senhor criou
Agora o louva, glorifica e canta.
Ó ondas, aplacai vosso furor,
Vosso orgulho abatei, que outro valor,
Mais alto que o vosso, se alevanta!... !...
III
JOÃO SEM TERRA
Terra de meus avós e de meus pais,
Cidade em que nasci, ridente céu,
E vós, ó meus amigos tão leais,
Corações que bateis a par do meu,
Oliveiras da serra, alvos casais,
Noites tranquilas de luar sem véu,
Humildes camponeses, onde estais?
Onde ficastes vós? Onde vou eu?!...
Onde vou eu, perdido, a navegar,
Ferido de morte, em busca do lugar
Onde tratar as minhas cicatrizes?!...
Judeu errante que me leste a sina,
Olha o que sou na vida pequenina:
Pobre João sem terra e sem raízes!... !...
Dia 24
I
FLOR EXÓTICA
Essa flor tropical, de tez queimada,
Que seria favor chamar trigueira,
Tem vinte anos, talvez, ou mais um nada,
E viaja sozinha na primeira.
Sua cor, à do ébano chegada,
Lembra terras de manga e de palmeira,
Mas é gentil, esbelta, bem lançada,
E tem um não sei quê de aventureira.
Veste-se bem, tem charme, é sensual,
Há um brilho de luxo oriental
Nas jóias que lhe adornam a figura.
Traz em volta uma corte masculina;
Pérola negra, o seu fulgor fascina!...
Anda Cleópatra em vilegiatura.
II
O PAPÃO
Dobrámos hoje o Cabo das Tormentas,
Esse que o nosso avô Bartolomeu
Também dobrou entre marés violentas,
Com vagas que chegavam quase ao céu.
Dobrámo-lo sem ondas rabugentas
Como aquelas que o nosso avô venceu;
Foram até tranquilas, sonolentas
As horas que o navio então viveu.
E foi pena que o velho Adamastor
Não tivesse exibido o seu furor,
Erguendo contra nós a voz tremenda!
Porque afinal na vida, que é entulho,
O que mais satisfaz o nosso orgulho
É vencer um papão… mesmo de lenda.!...
Dia 25
TRANSPLANTAÇÃO
Eu sou da terra das amendoeiras,
Dos pinheiros cismáticos, sombrios,
Dos choupos, que se alinham em fileiras,
Abrindo alas ao passar dos rios.
Sou da terra do luar, das oliveiras
Que fazem fundo a brancos casarios,
Das vinhas, das latadas, das parreiras,
Dos musgos cetinosos e macios,
Das papoulas, dos cravos encarnados,
Dos manjericos sempre perfumados,
Do alecrim, que tão bom cheiro dá.
Sou da terra da flor do verde pino…
Como ligar agora o meu destino
A uma flor rouxa de jacarandá?!... !...
Dia 26
I
DURBAN
As águas em que avança a nossa quilha
São já do Índico. Deus seja louvado!
Mar do oriente, mar de maravilha,
Por Gamas e Albuquerque navegado.
Em breve deixarei a minha ilha
Flutuante. Ainda bem! Estou cansado!
Vamos chegar não tarda nada. Filha,
Vai ver se temos tudo preparado.~
26 graus de latitude sul,
Mar calmo, vento brando, céu azul,
Vinte milha horárias, terra a oeste…
Ó senhor comandante, por quem é,
Levante a voz, mande pôr tudo a pé…
Que todo o barco se prepare e apreste!...
II
CHEGAR!...
Chegar… Mas chegar onde? A que paragem?
A que porto de abrigo ou de ilusão?...
Que me espera no fim desta viagem?
Que espero eu desta interrogação?...
Chegar!... Ó patrãozinho da estalagem,
Tem lugar para mim? Basta um colchão.
Não me demoro aqui, vou de passagem,
Nem sei bem para onde… sim ou não?...
Sim ou não?... Aí temos o dilema!
Quem encontrou a chave desta algema,
Grilheta que me tolhe mãos e pés?!...
Chegar!... Porquê chegar?!... sou um destroço…
E ainda espero, ainda me alvoroço!...
Ó alma, ó coração, como tu és!... !...
Dia 27
DESEMBARQUE
O navio atracou. Irreverente,
Deita a língua de fora ante a cidade.
A língua é a ponte, necessariamente,
Que outra não tem a esplêndida unidade.
Avançamos por ela lentamente,
Com enervante vagarosidade,
Espreitamos o cais por entre a gente,
Num misto de esperança e ansiedade.
Olha o Francisco Manuel além!...
Olha a Zezé, que já nos viu e vem
A correr para nós, erguendo o braço!...
Vamos depressa ao seu encontro, vamos!...
E é já em terra que nos abraçamos!...
Que fique em paz o grande peixe de aço!...
Lisboa – Lourenço Marques
Junho de 1968
terça-feira, 2 de janeiro de 2007
segunda-feira, 1 de janeiro de 2007
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