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domingo, 4 de julho de 2010

Mário Simões Dias

From Wikipedia, the free encyclopedia Mário Simões Dias de Figueiredo (Coimbra, 2 July 1903 – Lourenço Marques, 8 July 1974) was a Portuguese musicologist and professional violinist (a disciple of Lucien Capet and collaborator of Fernando Lopes Graça, among others), as well as a prolific music critic and poet. He was blind from the age of 10[1].
As an academic affiliated with the University of Coimbra, he authored works on music theory and the history of music as well as introductory texts concerned with raising public awareness of classical music; his collection of essays A Música, essa desconhecida became a popular introduction to music history in Portugal.[2][3]. For 13 years (from 1950 to 1963) he maintained a series of weekly live radio shows devoted to the divulgation of classical music, broadcast by the former Emissora Nacional[4][5][6]. As a poet[7], he was affiliated with the Portuguese neo-realist tradition and is celebrated chiefly for his book-length poem Cântico das Urzes[8][9].

quinta-feira, 25 de março de 2010

Mário Simões Dias [A] Violinista e Musicólogo (1903-1974)

Nota Biográfica
Mário Simões Dias nasceu em Coimbra em 1903, filho mais novo de Carlos Simões Dias de Figueiredo e de sua mulher Judite Simões Dias. O seu avô materno é o poeta José Simões Dias.
Perdeu a vista aos 11 anos, na sequela de uma meningite, o que não o impediu de ter uma vida intensamente activa.
Em Lisboa estudou violino com Francisco Benetó. Depois de alguns Concertos nessa cidade, em 1926 parte para Paris onde trabalha com Lucien Capet até à sua morte, em 1928. Dá concertos em Biarritz, Saint Jean de Luz e Paris (sala Pleyel), bem acolhidos pela crítica, mas regressa a Portugal em 1929 para fundar a «Academia de Música de Coimbra», projecto cujo arranque foi financiado por seu pai, e a cuja direcção técnica e artística, para além da docência de violino e outras disciplinas, dedicará a maior parte da sua vida.
Para além dessa actividade, teve intensa participação na vida musical na época e na divulgação da música, como confrencista, através de artigos em jornais e revistas, em programas radiofónicos e na promoção de concertos que levaram a Coimbra grandes artistas nacionais e internacionais, inicialmente através da «Sociedade de Concertos» criada com a fundação da Academia de Música e posteriormente através de outras Organizações, como o Círculo de Cultura Musical, de cuja delegação em Coimbra foi director.
Em 1968 foi para Lourenço Marques, acompanhando sua filha, genro e netos, com quem residia desde a morte de sua Mulher, em 1958, mantendo-se entretanto ligado à vida musical em Portugal por correspondência. Teve um programa regular de divulgação musical no Rádio Clube de Moçambique. Morreu nessa cidade em 1974.
Para além de três livros de poesia e dois de musicologia publicados, deixou numerosos escritos e poemas não publicados e uma vasta obra dispersa.
Fundação e desenvolvimento da Academia de Música de Coimbra / Instituto de Música de Coimbra
Sobre a fundação simultânea da Academia de Música de Coimbra e da Sociedade de Concertos, reporta-se às palavras de José Viana da Mota, à época Director do Conservatório Nacional de Música de Lisboa, a notícia deste evento:
“Pela pena do nosso Director e de vários escritores foi proposta e defendida a fundação de um Conservatório de Música em Coimbra. Ocasião houve em que tudo indicava a sua abertura para breve, mas todas as demarches falharam. Consola-nos porém a boa notícia que nos chega pela mão de um amigo. Coimbra já tem uma Academia de Música. Quem venceu tanta dificuldade? O nome da pessoa, ou pessoas que sem receio pelos encargos, tomou sôbre os ombros a vida da Academia? A Arte Peninsular, quer pô-los bem em evidência. O Dr. Carlos Simões Dias de Figueiredo, é quem dá o seu auxílio financeiro à nova Academia e um dos Directores da Sociedade de Concertos de Coimbra que funciona no mesmo edifício da Academia. A Direcção da nova escola foi confiada à inteligência do Dr. Manuel da Câmara Leite e de Mário Simões Dias. Da direcção da Sociedade de Concertos faz parte também, além dos nomes indicados, Victor Doria. (…) Pela nossa parte, felicitamos efusivamente os ilustres Directores que com auxílio dos competentes professores que escolheram para dirigir as várias cadeiras, realisarão uma obra digna do maior aplauso e dentro da máxima simpatia.”[B]
Na «Academia de Música de Coimbra» mais tarde (1933) Instituto de Música de Coimbra, leccionaram, entre outros, Pedro Prado, Arminda Correia, Macedo Pinto , Francine Benoit .
Fernando Lopes Graça, classificado em 1º lugar em concurso para as vagas de professor de piano e de solfejo do Conservatório Nacional de Lisboa em 1931, mas impedido de ocupar o lugar em funções públicas e preso por motivos políticos, aceita de boa vontade o convite para docente da Academia de Música que exerce de 1932 até 1936, ano em que é de novo detido[C]. Neste período consolida-se uma amizade com Mário Simões Dias que durará toda a vida. A Sonatina nº 2 para piano e violino de Lopes Graça (1931) é dedicada a Mário Simões Dias e a sua estreia, em Coimbra (1935), é interpretada por ambos.[D]
O ensino desta escola era oficializado, e todos os anos um Júri Constituído por professores do Conservatório Nacional se deslocavam a Coimbra para realizar os exames do curso geral. Os exames do curso superior eram feitos nos Conservatórios de Lisboa ou do Porto. Os diplomas conferidos pela Academia e mais tarde pelo Instituto eram assim equivalentes aos do Conservatório Nacional.
Divulgação musical e musicologia
Além da sua carreira como professor e concertista, não só nas salas de concertos mas também na Emissora Nacional (na época transmitidos em directo), exerceu actividade como crítico musical em jornais e revistas: foi colaborador regular na “Gazeta Musical e de Todas as Artes”[E] dirigida por João José Cochofel, assim como na página literária do comércio do Porto[F] e manteve durante mais de 20 anos (décadas de 50 e 60) um programa semanal na Emissora Nacional (2° canal). Em 70-74 manteve um programa de divulgação musical no Rádio Clube de Moçambique.
Na década de 60 teve a seu cargo a cadeira de Música Portuguesa nos “Cursos de Férias da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra” [G].
A sua profunda cultura musical, a fluência e a clareza com que sabia
expor os assuntos que tratava, faziam dele um conferencista muito solicitado:
entre outras realizou palestras na Faculdade de Letras da Universidade
de Coimbra, na Casa de Inglaterra e nas Casa Alemã, estas com a
colaboração de Maria Helena de Sá e Costa nas ilustrações musicais.
Fez também uma série de conferências em vários pontos do país, organizadas pela Fundação Calouste Gulbenkian com a colaboração de João de Freitas Branco e Grazie e Vasco Barbosa. Dirigiu a delegação em Coimbra do Círculo de Cultura Musical.
Colaborou no “Dictionnaire de la Musique” dirigido por Marc
Honegger[H], director do Instituto de Musicologia da Universidade de Strasbourg, elaborando os artigos relativos à música portuguesa, e no Vol I, dedicado à música, da Enciclopédia Pêiade, dirigida por Rolland – Manuel (EDITORA ARCÁDIA,1965)[I]. Publicações:
POESIA:
* Outonos [J]
* Puríssima [K]
* Cântico das Urzes [L]
ENSAlOS:
* A Música Essa Desconhecida [M]
* Aspectos da Canção Popular Portuguesa[N]
[A] Referências gerais – Grande Enciclopédia Luso Brasileira e “The International who is who in music” , Who is Who in Music, Inc., 1951
[B] José Viana da Mota http://pt.wikipedia.org/wiki/Vianna_da_Motta “Homenagem do Conservatório Nacional de Música de Lisboa a Alexandre Rey Colaço” (caixa no fim do artigo), em “Arte Peninsular: revista mensal de arte”, Ano I, nº2 Abr/Mai de 1929, pag 64 {http://purl.pt/6485/4/ }
[C] Ver notas biográficas sobre Fernando Lopes Graça, por exemplo em “public art sound” http://www.public-art-sound.com/Guest/Lopes-Graca.html ou em https://woc.uc.pt/fluc/getFile.do?tipo=2&id=1018
[D] Centro de Informação de Música Portuguesa (http://www.mic.pt/ ) referência à Sonatina nº2 de Lopes Graça, informação detalhada (http://www.mic.pt/cimcp/port/apresentacao.html?/cimcp/dispatcher?where=0&what=2&show=0&pessoa_id=199&lang=PT )
[E] Rede Municipal de bibliotecas de Lisboa - Registo de 2 artigos em http://catalogolx.cm-lisboa.pt/ipac20/ipac.jsp?session=1254F30C506U5.191134&profile=rbml&uri=link=3100018~!246186~!3100024~!3100022&aspect=basic_search&menu=search&ri=2&source=~!rbml&term=Dias%2C+M.+Sim%C3%B5es&index=AUTHOR#focus Gog perante a música - AUTOR(ES): Dias, M. Simões IN: Gazeta musical e de todas as artes. - Lisboa. - S.2, a.10, n.111 (1960), p. 69. - S.2, a.10, n.111 (1960), p. 75 CDU: 78 ; A lição de Mahler AUTOR(ES): Dias, M. Simões IN: Gazeta musical e de todas as artes. - Lisboa. - S.2, a.10, n.112-113 (1960), p. 99
[F] Ref em:
AUTOR:BARRETO, COSTA (ORG.) TÍTULO: ESTRADA LARGA 2 ANTOLOGIA DO SUPLEMENTO "CULTURA E ARTE" DE "O COMERCIO DO PORTO" EDITORA PORTO CÓDIGO: 254911 NúMERO DE PáGINAS: 510
ANO DE EDIÇÃO: 1958 (Insere 2 artigos)
[G] O livro “Aspectos da canção popular portuguesa” é Edição do Curso de Férias da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1952
[H] Saber o ano e edição (são muitas) – existe em bibliotecas …
[I] Referência em “Associação Portuguesa Amigos do Órgão” – biblioteca - http://www.apao.web.pt/historia/biblioteca/livros/temas/musica.htm
[J] Outonos / Mario Simões Dias, Coimbra, Coimbra Editora, 1921 ; Cota(s): AP 5855; 70 páginas
http://books.google.pt/books?id=zKKhGwAACAAJ&dq=m%C3%A1rio+%22Sim%C3%B5es+dias%22&lr=&as_drrb_is=q&as_minm_is=0&as_miny_is=&as_maxm_is=0&as_maxy_is=&num=100&as_brr=0
[K] Purissima / Mario Simões Dias. Coimbra : Coimbra Editora, 1923. Cota(s): AP 6147 [L] Cântico das urzes, bentinha da nossa Beira : novela em verso / por Mário Simões Dias. [S.l. : s.n., s.d.] ( Coimbra : : Oficinas Gráficas da Coimbra Editora, 1936). Cota(s): AP 4389 http://www.biblartepac.gulbenkian.pt/ipac20/ipac.jsp?aspect=basic_search&index=.GW&ipp=20&menu=search&npp=20&profile=ba&ri=&spp=20&term=cantico&x=1&y=1# [M] A música essa desconhecida / Mário Simões Dias. Coimbra : Centro Universitário, 1951.RS 437
http://books.google.pt/books?id=zKKhGwAACAAJ&dq=m%C3%A1rio+%22Sim%C3%B5es+dias%22&lr=&as_drrb_is=q&as_minm_is=0&as_miny_is=&as_maxm_is=0&as_maxy_is=&num=100&as_brr=0
[N] Aspectos da canção popular portuguesa / M. Simões Dias - Coimbra : Curso de Férias da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1952
(http://www.bibliotecas.cm-amadora.pt/docbweb/plinkres.asp?Base=ISBD&Form=COMP&SearchTxt=CL+784.4(469)&StartRec=10&RecPag=5 )

domingo, 18 de outubro de 2009

JOÃO DA MALHA (Poema em verso, mais tarde posto em prosa)- por Mário Simões Dias

O sol já se aproxima do poente,
Quando, ronceiro,
Quase aderente ao solo em que caminha,
João da Malha sobe lentamente
Pelo carreiro
Da Pedruguinha.
.
Leva a enxada ao ombro e, de olhar fito
Num ponto vago
Do infinito,
Seus olhos são batel que se perdeu
No grande lago
Azul do céu.
.
Ao chegar à courela,
Para um segundo;
Depois,com modos bruscos,agitados,
Empurrando a cancela,
Entra na leira que há bem poucos dias
Ainda era para ele um mundo
De cuidados,
De alegrias!...
.
Entra de manso,devagar,
Como quem vaifazer uma surpresa,
Ou vai para roubar!...
Friamente,olha em roda:
É ela, a Pedruguinha,
A sua leira,sua riqueza...
É ela toda,Toda inteirinha!...
.
Num arremeço,
Para afastar a sugestão que vem,
Como um torpêço,
Da terra mãe,
João da Malha, brusco,Empurra para fora, com a enxada,
O penedo negrusco
Que lhe veda a entrada.
.
“Quem poria aqui isto “?!...
E, fechando a cancela com barulho,
Parece desejar,
Ante o caso banal, mas imprevisto,
Impedir o pedregulho
De voltar.
.
Lento, começa
A caminhar pela vereda estreita,
Aberta ao longo da propriedade,
E, pesadão,
Grave, sem pressa,
Aqui se curva sobre um talhão,
Além ajeita,
Aqui contempla, mais além espreita
As mil promessas da novidade.
.
O sol ainda brilha, ainda há calor,
E, sob a luz que a banha,
A terra, a dar-se toda ao sol ardente,
Ao escaldante amor
Desse amigo distante,
Sente a volúpia estranha
De quem se entrega voluntáriamente
A dois braços de fogo devorante.
.
Amor fecundo,
Volúpia luminosa, enternecida,
Orgulho de sofrer no mais profundo Do seio materno ...
Contentamento da missão cumprida,
Renovo eterno
Da mesma vida!...
.
João da Malha
Não sabe definir tudo o que sente
E a terra lhe sugere;
Mas qualquer coisa que no ar se espalha
E que da terra vem,
Fá-lo pensar inconscientemente
Numa mulher
Que vai ser mãe.
.
E começa a lidar.
Por entre as couves altas, devagar,
Não vá tocar nalguma,
A enxada vai abrindo
Estreito rêgo, longo e coleante,
Por onde a água há-de saltar, sorrindo,
Levando a cada uma,
Após um dia sofocante,
Um pouco de seu frescor
Reanimador
E fecundante.
.
E João da Malha
Cisma, enquanto trabalha.
Porque não há-de ser assim?... A terra
Leva tudo o que um homem pode dar,
O trabalho, os cuidados, o suor,
E para lhe arrancar
Aquilo que ela encerra,
O vinho,o pão,
Senhor!...
Quanto martírio e quanta ralação!...
.
E depois, melindrosa que ela é!
..
Hoje p.rometedor e
Como um sorriso de criança,
Amanhã, quem a viu e quem a vê!
Porque caíu geada,
Porque o vento soprou, ei-la mudada,
Perdido numa hora,
Um ano de esperança!...
.
É o mildium na uva,
É a moléstia a dar nos batatais...
O bicho que roi tudo e tudo estraga...
A seca... a chuva...
A neve... os vendavais.,
.
Que às vezes também são behttp://www.blogger.com/img/blank.gifm boa praga!...
.
.
Ainda o ano passado,
As oliveiras a vergar ao peso
Do fruto já vingado,
E nisto vem um vento de tal raça,
Um furacão tão tezo,
Que deitou tudo abaixo!... Uma desgraça!...
.
E é isto a vida de quem sacha e cava
E rega e lavra e monda
E revolve hora a hor a terra ingrata!...
Olhos sempre no chão, vontade escrava
Da terra,que não sabe dizer bonda
A quem a amanha e trata.
.
Sempre uma lida insana!
Sempre a espinha dobrada
Sôbre a enxada,
Ou sobre a foice, quando a ceifa aponta!
E sempre a mesma cabana,
Sempre a mesma telha vã,
O mesmo caldo, e sempre incerta a conta
Do que se tem para amanhã!...
.
Os gozos onde estão?...
É só à noite uns dedos de cavaco
À porta da loja
Do Zé do Paleio,
Ou então,
Quando um homem se arroja
A perder um pataco,
Uma bisca lambida ou um sete-e-meio...
.
E daqui não se sai!
É como a roda do rio
Sempre na mesma cantiga.
O filho faz o que fazia o pai,
Sem uma fuga,sem um desvio,
Sem uma queixa pela fadiga.
.
Raio, que vida esta!
Até um homem deixa de ser homem,
Para ser uma besta,
Impassível diante do que sente,
Das mágoas que o consomem
Ininterruptamente!...
.
Solene como um rei, o sol declina,
Mas tão manso, tão sem pressa,
Que a gente imagina,
Ao vê-lo baixar,
Que o sol já começa
A sentir pena de nos deixar.
.
Em baixo, as casas da aldeia
Espalham-se no vale extenso e aberto
Ao ar e ao sol
E, mais além, num zig
-zag incerto,
A estrada nova coleia,
Lembrando gigantesco caracol.
.
Há manchas na paisagem,
Manchas amarelinhas de trigais
Em terras baixas de regadio,
Manchas verdes de folhagem,
O verde claro dos olivais,
O verde escuro dos pinheirais,
Grave e sombrio.
.
E ainda o verde tenro, amarelado,
Das vinhas que, com graça luninosa,
Trepam encosta arriba,
Mostrandoos cachos de ouro ao sol dourado,
Como dozela vaidosa
Que seus enfeites exiba.
.
Pelas altas montanhas,
Onde, por entre pedras calcinadas,
Nem musgo rasteiro espreita
Ou deita
Sua breve penungem,
Por essas terras altas, desoladas,
Há largas manchas castanhas
E velhos tons de ferrugem.
.
Mas a paisagem ri suavemente
E canta sob o sol que tudo alegra
E tudo acaricia.
Só João da Malha,olhando a terra, sente
Que a vida é negra,
Negra e sombria!...
.
............................................................................................
.
Alegre, verdejante, sossegada,
A Pedruguinha,
A meio do outeiro,
Fica em poial risonho alcandorada,
Como avezinha
No seu poleiro.
.
Não é grande, isso sim!...
Mas faz milagres o amor de quem
Trabalha no que é seu,
E assim,
A Pedruguinha amanhada,
Bem sachada,
Bem lavrada
Por quem a vida lhe deu,
Tem os aspecto de alguém
Que quiz pagar com bençãos todo o bem
Que recebeu.
.
Nela, ou por milagre ou por encanto,
O suor fez-se planta, fruto e flor,
A humildade vitória,
A luta canto,
E o gesto rude, para sua glória,
Benção e graça do Senhor.
.
Nela, tudo sorri,
As folhas largas como mãos abertas,
Que do cuval se estendem,
As longas vagem que pendem
Das vara dos feijoeiros,
As bojudas abóboras, que ali
Lembram calvas cabeças descobertas,
E os próprios rubros tomates
São risadas escarlates
Que irrompem dos tomateiros.
.
Ao canto do poial,
Robusta, musculosa, quase atlética,
A despeito de um ar suave de avozinha,
A figueira negral
Empresta certa estética,
Imprime certo tom patriarcal
À Pedruguinha.
.
E gentil, altaneira,
Ao ventozinho leve que começa
A soprar sorrateiro,
Um campinho de milho ondula,ondeia
E agita sorridente uma promessa
Em cada espiga cheia.
.
João da Malha
Conhece há muito tempo esse recanto;
Por lá brincou petiz
E, homem feito, já por lá trabalha
Há muito ano
Num labor insano,
Amanhando,
Sachando,
Semeando,
Levando a cada canto
A vida a uma semente, a uma raiz.
.
De tanto ver no solo projectada
A sombra do seu vulto,
Como figura animada
A repetir-lhe os gestos vigorosos,
Há dentro dele o sentimento oculto,
A secreta noção
De que os traços sinuosos
Da sombra que o retrata, muda e calma,
São, no solo que ele ama, a projecção
Do seu ser, em corpo e alma.
.
Na terra que cultiva,
Algo da sua vida se insinua
E se renova nas espigas cheias,
Alguma coisa bem viva,
Cuja vida já foi sua,
Sangue que já correu nas suas veias.
.
Por isso, limitada a aspiração
Da sua vida ao chão que lhe sorri,
Correm-lhe os dias naturais, felizes,
E sente-se irmão
Das plantas que ali
Colheram raizes.
.
Agora, porém,
Alguma coisa dentro dele existe
Que o faz olhar a terra misteriosa
De diversa maneira,
Alguma coisa o detém,
O traz alheio e triste,
O livra da atracção, tão poderosa,
Com que a terra o prendeu a vida inteira.
.
Constante sobresslato
Faz-lhe da vida frágil batelinho
Em luta no mar alto,
E a estrela cintilante,
Que do norte o guiava no caminho,
Como astro bendito,
Vagueia agora, fugitiva, errante,
Perdida no infinito.
.
Outrora
Seguia confiante a sua estrada,
Única aberta sob um sol de festa;
Agora
Vê-se diante de uma encruzilhada,
Sem decisão para tomar por esta
Ou por aquela estrada.
.
E contudo,
É preciso fixar-se, dar um norte,
À vida que não para,
E não cruzar os braços... sobretudo
Ter coragem, ser forte
E olhar a vida em frente, cara a cara.
.
E João da Malha, João da Malha
Cisma, enquanto trabalha.
.
Após imagem desenterra imagem,
Sucedem-se lembranças
De mil castelos que no ar ergueu;
É toda uma paisagem
Que dentro dele se estende e desenrola,
Num agitar confuso de esperanças,
De saudades da vida que viveu,
Fumo que ao longe se evola.
.
Porém, a sobrepor-se a tudo quanto
Sua lembrança evoca,
A afagar-lhe os desejos, a ambição,
Surge lá lomge, tentadora, envolta
Em misterioso encanto,
A terra da tentação,
A terra ardente, cuja luz sofoca,
Mas cujo seio, a abrir-se em pomos loiros,
É uma torrente à solta,
Um perpétuo jorrar de mil tezoiros!...
.
O Brasil!... O Brasil!...
O mistério, o país maravilhoso
Que as espumas ocultam!...
Como nos longes seus tesoiros mil,
Fazendas, cafèzeiros, sol radioso,
Aos olhos dele avultam!...
.
Muitas vezes ouvira já falar
Nesse caudal gigante que parece
Que no há-de ter fim!...
Mas até lhe custava acreditar
Que no mundo houvesse
Uma terra assim!...
.
Mas era verdade!
Ele bem vira, com seus próprios olhos,
Como o Cristiano do Sobral voltara:
Ar de cidade,
Notas aos molhos,
Um cheiro a rico de virar a cara!
.
Sempre bem posto,
Bem preparado,
Dedos cheios de aneis, Um riso de quem anda bem disposto,
E então tratado
Que nem os reis!...
.
Boa gravata ao pescoço,
Boa bota de verniz,
De polimento ou lá que raio é!...
Enfim, um brasileiro, um ricalhoço,
Que, pelo que se diz,
Nem sabe ao certo quanto tem até!...
.
Já se sabia que ele estava bem.
Ainda antes de vir,
Comprara o terreno da Ínsua da Vasa,
Que o Rasca vendera por não ter vintém!
E agora o Cristiano já dissera
Que ía construir
Uma grande casa,
Como ninguém na aldeia inda tivera!
.
Que tal seria a casa, era de ver!
Alta, caiada,
Varandas corridas,
E lá por dentro salas e mais salas!...
E ele, João da Malha, sem poder
Largar a enxada
Sempre amarrado à mais ruim das vidas,
A sofrer, a roê-las, a amargá-las!...
.
E tudo porquê ?
Porque não fôra, como o Cristiano,
Capaz de arremeçar consigo até
À outra margem do largo oceano.
.
Tudo porque deixara
A rotina lançar-lhe aos pulsos duros
Apertada cadeia
E porque desde então assim ficara,
Preso por ela, dentro dos muros
Da sua aldeia.
.
Forte imbecil!...
Sempre amarrado ao mísero torrão,
Feito escravo de todos!... Que papalvo!...
E o Brasil, o Brasil
Ao alcance da mão,
Que era só resolver-se e estava salvo!...
.
E afinal porque não se resolvia?!...
A todo o tempo é tempo de emendar
Um disparate, um erro!
Deitaria consigo, deitaria!
Era novo, sabia trabalhar,
Tinha uns braços de ferro.
.
Para a passagem, isso é que e
ra pior!...
Mas que diabo,
Não fosse outro o torpeço!...
Não tinha a Pedruguinha o seu valor?...
Vende-la-ia, pois então, e ao cabo,
Compraria mais terras no regresso.
.
Vendê-la-ia, sim,
E o que de lá mandasse em cada carta
Que escrevesse à mulher,
Raios a partissem se, enfim,
Não chegasse à larga,à farta
Para a tropa cá viver!...
.
E João da Malha,
Vendo-se já na terra abençoada
Das riquezas sem conta,
Já consigo sorria:
“Adeus, vida infeliz de quem trabalha!...
Adeus, alvião!... Adeus enxada” !...
A sua decisão estava pronta:
Iria.
.
.......................................................................................
........................................................ .
Cansado de cismar,
Reparando que o sol ía fugindo,
Que se acabava o dia,
João da Malha deixara-se tombar
Sobre uma pedra, a saborear, sorrindo,
A vida que antevia...
.
Em roda,
Uma paz suavíssima,discreta,
Descia sobre a terra toda
E, docemente,
Suavemente,
A tarde,com seus últimos lampejos,
Serena, quieta,
Fôra subindo pela vertente
E agora, presa nos altos cumes
Por fios breves, quase a quebrar,
Procurando outros céus a que se acoite,
A tarde, doce como os perfumes
Que andam no ar,
Mandava à terra seus mil desejos
De boa noite.
.
E a noite pelo vale,
Com levezas carinhosas,
Toda desvelo, quase amternal,
Já começava pousando
Sobre o fundo das quebradas
Seus novelos de sombras silenciosas,
Que apouco e pouco se iam desdobrando,
Desapertando
E avolumando,
Como compridas meadas
Desenroladas.
.
E nesse aproximar de sombra e luz,
Ambas suaves, ambas esbatidas,
Passa uma branda ternura
Que envolve, que alicia, que seduz...
Como se luz e sombra, assim inidas,
Tão serenas e calmas,
Espalhassem mais paz e mais doçura,
Mais quietação sobre as almas.
.
Mansa e mansa,
Como gotinha de água presistente,
Que teima em fazer branda a pedra dura,
Essa paz envolvente,
Respiração da terra que descansa
Em suave torpor,
Entra, penetra, acaricia e espalha,
A pouco e pouco, um singular frescor
Na alma obscura
de João da Malha.
.
E a noite cai.
A luz,cada vez mais esmaecida,
Cada vez mais distante,
É como nota perdida
Que se esvai,
Toda em ecos diluída,
Toda em suspiros de agonizante.
E João da Malha, pleno de esperança,
Sonha, enquanto descansa.
.
Uma voz doce como voz materna,
Baixinha e segredante,
Desprende-se de tudo o que o circunda,
Sombra de voz, macia e terna,
Que vem, sabe-se lá!... da luz... do instante...
Do céu... da terra... do espaço...
Sabe-se lá!... mas que de paz o inunda
E o toma todo, co
mo um longo abraço!...
.
.
A princípio não sabe donde parte
Esse fio de voz;
Parece-lhe que vem de toda a parte
E de parte nenhuma,
Num sussurrar de estranhos fala-sós,
Embuscados, ocultos pela bruma.
.
Depois, pouco a pouco, a voz ressalta
Do silêncio, mais nítida, mais clara,
Mais alta,
Num segredar nenos incerto,
E João da Malha então repara
Que a voz lhe fala ali bem perto:
.
“Ouve, João da Malha, escuta um pouco:
A noite desce por sobre nós;
Que funda mágua a minha!...
Não sabes quem te fala? Pobre louco!...
Já não conheces a minha voz,
A voz da tua amada Pedruguinha!...
.
Há meia hora que chegaste aqui,
E, enquanto trabalhavas,ou fingias
Que trabalhavas, distraído e lento,
Fui procurando decifrar em ti
O enigma que escondias
No fundo do pensamento.
.
E decifrei-o,
Mas como decifrá-lo me custou,
Me encheu de mágua e de receio!
Como cada raiz em mim cravada
Se contraíu de espanto e se quedou
Entristecida, pasmada!...
.
Pois quê, vais-nos deixar?!...
Vais cortar esse laço que nos liga
Há tantos anos?... Senhor!...
Como se pode assim despedaçar
Uma união tão funda e tão antiga,
Sem tremer de pavor?!...
.
Há quantos anos, quantos, aqui vinhas
Todos os dias, sem faltar nenhum,
A rodear-me sempre de cuidados!
E que cuidados tinhas,
Não fosse faltar-me algum,
Nos dias próprios, de antemão marcados!...
.
Eu já sabia:
Se o sol em agosto me abrasava em fogo
E me tomava a sede angustiante,
A tua enxada surgia,
Solícita,abrindo logo
Caminho ao veio de água refrescante.
.
E quando, findo aquele esforço ingente
De produzir mil frutos, me quedava
Exausta, ao cabo da missão cumprida,
A tua mão deligente
Logo vinha e me estrumava,
A dar-me força nova e nova vida.
.
Por isso me entregava toda inteira
A cumprir meu destino, satisfeita
De o ter tão alto e tão nobre,
E sofria, e lutava de maneira
Que no dia festivo da colheita,
Nesse ao menos, tu fosses menos pobre.
.
Com que profundo orgulho,
Com que estremecimentos silenciosos
De um amor ignorado,
Te via, triunfante, ao sol de Julho,
Erguer as mãos e, nelas, gloriosas,
Os frutos que só eu te havia dado!...
.
Era um encantamento,
Uma hora de comoção, Para mim, a da ceifa!... Num momento,
As foices, vibrando,
Cortavam então
Espigas que de há muito, sem cessar,
Eu vinha criando
Só para tas dar!...
.
Nem tu calculas a ternura imensa
Com que eu alimentava, dia a dia,
Cada humilde semente,
Sem aspirar a outra recompensa,
Além da alegria
De te ver contente!...
.
Mas como o tempo foge!...
Como tudo se extingue, se desfaz
Por sob o azul dos céus!...
É breve e fugitivo o dia de hoje!
Como tudo é fugaz,
Neste mundo de Deus!...
.
Tudo afinal acaba! De hoje em diante,
Não mais procurarás tornar a ver-me,
Para que eu te não lembre a minha dor;
Eu ficarei esperando instante a instante,
Passiva e enerme,
O dia em que hei-de ser de outro senhor.
.
Como isto me apavora!...
Como a separação que se aproxima
Me faz estremecer!...
Dentro de mim, cada raiz te chora,
Cada semente obscura se lastima
Da vida que vai ter!...”
.
Cala-se a voz da terra angustiada.
Em volta, a noite, abrindo longamente
Suas asas de sombra,
Ficara absorta, parada,
Suspensa dessa voz que, pungente,
Até a própria escuridão assombra.
.
Atentas sentinelas
Espalhadas nos céus silenciosos
Como dourada poalha,
As primeiras estrelas
Parecem olhos a espreitar, ansiosos,
O pobre João da Malha.
.
E João da Malha sente aquele olhar,
Sente que tudo em roda
Espera seja o que for,
E parece esmagá-lo esse esperar
Da terra toda
Em redor!...
.
Sùbitamente,
O atavismo de trinta gerações,
Que da terra viverm dia a dia,
Acorda nele o grande amor latente
Que, como brasa a arder sob tições,
Dentro dele existia.
.
“Tens razão, Pedruginha!
Como pude eu alimentar a ideia
De um dia te deixar?!...
A tua vida está ligada à minha;
Somos dois elos de uma cadeia,
Não nos podemos separar”!...
.
E enquanto os astros sobem no horizonte,
João da Malha,
O heroi obscuro, o eterno lidador,
Põe-se a caminho, levantando a fronte,
Como no fim de uma batalha
Um rei que fica vencedor.
.
.
Coimbra, 31-12-1940

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

HEROI OBSCURO - por Mário Simões Dias

Humilde lidador do chão daninho
Que vais, sol a sol, enchada erguida,
Rasgar a terra, como a abrir caminho,
Como a levar a terra de vencida!...
.
Em teu lidar constante eu advinho
A força antiga,que julguei perdida,
O esforço criador do pão,do vinho,
Da alegria afinal da própria vida
.
Humilde lidador, neto distante
Desse outro herói, que, a golpes de montante,
Fêz a nossa terra deste canto em flor!...
.
Também tu, sob os sol, a tez queimada,
Ganhas, a golpes da robusta enxada,
O nome heroico de conquistador
.
M.Simões Dias

domingo, 11 de outubro de 2009

Mário Simões Dias - No Diário de Notícias 5-2-1930

Do Diário de Notícias 5-2-1930:
É amanhã que se realiza no salão do conservatório o anunciado recital de Mário Simões Dias, que, como os precedentes, tem interessado vivamente o nosso meio artístico musical, sempre ávido de aplaudir aquele insigne artista e delhe testemunhar a admiração que lhe consagra.
Simões Dias é um temperamento de eleição, um «virtuose» que arrebata e apaixona e cuja legião de admiradores é imensa e vai-se avolumando dia a dia num crescendo constante, à medida que à sua gloriosa carreira se vão cimentando novas páginas de triunfos. Achamos interessante, a propósito deste recital, fornecer aos nossos leitores alguns dados biográficos de Mário Simões Dias.
Nasceu em Coimbra a 2 de Junho de 1903, vindo aos 6 anos para Lisboa, onde seus pais fixaram residência, tendo-se manifestado algum tempo depois os primeiros sintomas do mal que aos 10 anos lhe roubou a vista.
Desde muito criança se notava em Mário Simões Dias grandes aptidões musicais, que com o tempo se foram evidenciando e afirmando duma forma indiscutível, a ponto das provas espontâneas do seu temperamento artístico levarem os pais, por conselho de Cecil Mackee, então empresário do sr Carlos, a confiar a educação do novel talento ao grande mestre F. Benetó.
Benetó viu sempre em Simões Dias um dos seus melhores discípulos, e do convívio destes dois espíritos privilegiados nasceu uma amizade que ainda hoje subsiste.
A 8 de Junho de 1925 realizou o seu primeiro recital em Lisboa, no salão da Liga Naval, com um programa do qual fazia parte o celebre concerto op 61 de Beethoven.
Em Fevereiro de 1926 executou, no Teatro do Gimnasio, com a orquestra de Fernandes Fão, o concerto de Max Bruck.
No dia 2 de Maio do mesmo ano apresentou-se ao público do Porto, no salão nobre do Centro Comercial, sendo entusiásticamente aplaudido.
Todos estes concertos valeram a Simões Dias referências elogiosas em toda a imprensa de Lisboa e do Porto.
Animado por estes triunfos consecutivos e aspirando à perfeição da sua arte, quis ouvir e receber conselhos dos grandes mestres estrangeiros.
Em 1926 fixou residência em Paris, donde há poucos meses regressou.
Durante estes três anos ouviu os ensinamentos do grande mestre Lucien Capet, com que privou largamente e cuja morte inesperada profundamente o impressionou.
Embora fosse Capet o seu mestre preferido, doutros ouviu ainda os preciosos ensinamentos. Mário Simões Dias várias vezes se apresentou ao público francês, que muito o apreciava, dando recitais não só em Paris como também fazendo-se ouvir com grande sucesso e inúmeros aplausos em Biarritz e St Jean de Luz.
Em Paris, além de ter tomado parte nas «matinées» de Henri Pruniéres, director de «la Revue Musical», de ser ouvido no Grande Hotel Continental em colaboração com o eminente pianista Marcel Ciampi, etc, Mário Simões Dias realizou o seu último recital em Abril de 1929 na sala «Chopin» da Casa Pleyel, que mereceu de exigentes críticos parisienses, como Marcel Beruhein, Genis Mussy , Pierre Wolf e outros, justas e lisongeiras apreciações. No verão de 1929 regressou a Portugal, fixando residência em Coimbra, onde fundou com seu pai e o Dr Câmara Leite a Academia de Música de Coimbra, Instituto Particular a que o Governo concedeu a vantagem de nele serem feitos os exames do Conservatório.
Sem deixar a sua vida de concertista, Mário Simões Dias trabalha afincadamente no engrandecimento da sua Academia, que tem para Coimbra um extraordinário valor.
Sacrificou à música toda a sua vida, mesmo a sua vocação para as letras, revelada auspiciosamente num livro de versos denominado «Outonos» , publicado em 1921, a que se seguiu um poemeto, «Puríssima», obras estas em que largamente foi demonstrada a sua sensibilidade de artista e que mereceram elogios de toda a crítica.
É, pois, um verdadeiro artista em toda a acepção da palavra,Mário Simões Dias, a quem o nosso público irá dispensar, mais uma vez, a sua carinhosa admiração.
Já poucos bilhetes restam para este recital, atendendo ao valor de Mário Simões Dias, podendo-se obter os poucos que restam no salão Neuparth, da rua nova do Almada; Casa Sassetti, ,, da rua do Carmo, e joalharia do Xavier de Carvalho, da rua Áurea.

sábado, 3 de maio de 2008

publicações de Mário Simões Dias - 1903

Cântico das urzes, bentinha da nossa Beira : novela em verso / por Mário Simões Dias. [S.l. : s.n., s.d.] ( Coimbra : : Oficinas Gráficas da Coimbra Editora, 1936). Cota(s): AP 4389 Outonos / Mario Simões Dias. Coimbra : Coimbra Editora, 1921. Cota(s): AP 5855 Purissima / Mario Simões Dias. Coimbra : Coimbra Editora, 1923. Cota(s): AP 6147 Cota(s): A música essa desconhecida / Mário Simões Dias. Coimbra : Centro Universitário, 1951.RS 437 Aspectos da canção popular portuguesa / M. Simões Dias. Coimbra : Curso de Férias da Faculdade de Letras da Universidade, 1952. Cota(s): BB 14061

O PADRE PATAGÓNIA

Não sei donde veio este apelido ao Pª José Simões Dias , de Coja,mas a verdade é que assim ficou na tradição coimbrã. Era arcediago de Seia. Em Coja era um abastado proprietário, e na sua casa, sobranceira ao rio, mandou fazer em 1887 uma capela, por sinal com um interessante púlpito de madeira entalhada, obra de José Gonçalve Abreu, o mesmo que fez os retábulos da igreja matriz de Coja. De vez em quando o Pª José Simões Diasera convidado para pregar algum sermão de promessas e não aceitava dinheiro aos seus conterrâneos, mas, como precisava de estrume para as suas propriedades, às vezes dizia: Olhe,leve-me lá um carro de mato. Chegou aos ouvidos do Prelado que tal padre pregava sermões por um carro de estrume... Chamado a capítulo, respondeu sorridente: olhe, sr Bispo-Conde, se V.Exª o ouvisse , nem tanto dava por ele. A sua empregada tinha dois grilos numa gaiola, e um dia achou a gaiola vazia. Sr Pª José, a gaiola tem a porta fechada, mas os grilos não estão lá! Se calhar, comeram-se um ao outro... Resposta dele: Ai comeriam, comeriam... Na sua residencia de Coimbra leccionava para o Liceu. Numa tarde, um um tanto fatigado, passou um trabalho aos alunos, e adormeceu na cadeira. Os marotos, em vez de estudarem, foram para o corredore formando uma rosa dançavam cantando, em tom de ladaínha: «viva o f'riado, ora pro nobis...» O mestre acordou, foi meter-se na roda e cantava no mesmo tom: «E no fim do ano, miserere nobis...» A. Nunes Pereira Correio de Coimbra, 16-3-2000

segunda-feira, 8 de janeiro de 2007

Zetovarinho

Mário Simões Dias - LINHA DE ÁGUA Poemas de Aquém e Além Mar

Em 1968, apanhado nas «malhas que o império tece» Mário Simões Dias viu-se «transplantado» de Portugal para Moçambique.

Da travessia no navio «Príncipe Perfeito», que fez na companhia da filha Maria da Graça e dos 6 netos mais novos, resulta o Diário de Bordo que a seguir se pode ler.

Mário Simões Dias

LISBOA – LOURENÇO MARQUES

DIÁRIO DE BORDO

Ó mar largo, ó mar salgado,

De onde te vem tanto sal?...

Vem das lágrimas choradas

Nas praias de Portugal !...

(Popular)

Lisboa 11 de Junho.

I

EMBARQUE

11 de Junho, terça feira. Marco

Com esta data o dia da partida.

Subi há duas horas para o barco

E vivo ainda a dor da despedida.

Tudo isto é ainda novo para mim, que embarco

Pela primeira vez na minha vida.

Julgo-me neto de Gonçalves Zarco,

Pois também levo as ondas de vencida.

Mas vou para mais longe; na viagem,

Hei-de mesmo avistar-me, de passagem,

Com Diogo Cão, com Bartolomeu Dias…

E no Zaire e no Cabo hei-de mostrar-lhes

O luxo do meu barco e perguntar-lhes:

“Então, que dizem vossas senhorias”?!...

II

MAREANTES

“Então que dizem”!… Rijos marinheiros,

Que em tão frágeis barquinhos se arriscavam,

Com cartas de marear e com roteiros

Que ainda tão longe da verdade andavam!...

Meio experientes, meio aventureiros,

Quantas traições no mar os esperavam!

Mas guiava-os o brilho dos luzeiros

Dos reinos, dos Impérios que buscavam.

Mas eu não busco nada. Impérios vãos,

Se um dia os tive presos entre as mãos,

Foi só para entre as mãos os desfazer.

Reinos, impérios… tudo isso é pó!...

Hoje, Senhor, procuro só

Sete palmos de terra onde morrer.

III

LARGADA

Como a manobra do desatracar

Leva tempo a fazer!... Que lentidão

No recolher dos cabos, no ligar

Das máquinas que gemem no porão!...

Com elas, todo o barco há-de vibrar…

E eu sinto, nessa oculta vibração,

Qualquer coisa de humano a latejar,

Como o bater de um grande coração.

Ó navio das minhas decepções,

Sinto no sangue as tuas pulsações,

Somos irmãos neste momento amargo!...

Pesa-te, eu sei, um coração desfeito!

Que importa o peso que me esmaga o peito?...

Quebra as amarras, vamos! Faz-te ao largo!...

Dia 12

I

MAR ALTO

Neste segundo dia, quarta-feira,

Já não se avista terra da amurada.

A paisagem fatiga, é uma canseira…

Só mar e céu, só mar e céu, mais nada!...

Sente-se a gente como prisioneira

Destes cem metros em que faz jornada.

E há aí quem passe nisto a vida inteira!

Pobre gente do mar, sempre isolada!...

Só, no meu camarote, não resisto:

Sucumbo à nostalgia, a tudo isto,

Sem nada em que me apoie ou me concentre!...

Lanço-me sobre a cama, como um feixe,

E julgo-me engolido por um peixe

Enorme, que me leva no seu ventre.

II

O NAVIO

Percorro palmo a palmo, passo a passo,

De estibordo a bombordo, à popa e à proa,

Este gigante de madeira e aço

Que apita e geme e ronca e vibra e soa.

Um mundo flutuante!.. E enquanto faço

A todo o barco uma inspecção à-toa,

Esse monstro que vence tempo e espaço

Enche de espanto a minha vil pessoa.

Entro em salas de música, de fumo,

Descubro, neste vaguear sem rumo,

Salões, espelhos, lojas e piscinas.

E pasmo de pensar que tudo isso

É posto pela técnica ao serviço

Das nossas vidas pequeninas!...

III

SAUDADE

Tudo ficou à popa do navio!...

Tudo ficou nesse torrão sagrado,

Onde lavrei a terra ao sol de estio

E um reino tive de luar banhado!...

Lá me correu a vida como um rio

Que vai descendo para o mar salgado

Bucólico hoje, como argênteo fio,

Amanhã tumultuoso e revoltado.

Lá te deixei a ti, ó doce fada,

No silêncio da última morada

Que pude erguer-te, ansioso e comovido!...

Possa eu algum dia regressar

E vir, junto de ti, continuar

O nosso belo sonho interrompido!...

Dia 15

I

ESCALA

Parámos esta noite no Funchal;

Vinhos, bordados, bons hotéis, turismo,

Móveis de verga, clima sempre igual,

Cor regional e cosmopolitismo…

Eis um belo cartaz que, por sinal,

Não falseia a verdade, o realismo.

Tudo se encontra nesta terra ideal…

Bênção de Deus a emergir do abismo!

Mas a ilha possui outra beleza

Além daquelas, a da natureza

Abrupta e forte, primitiva e crua.

Outra beleza, sim, porque afinal,

A estranha força da beleza é tal

Que até no próprio horrível se insinua.

II

SANTO ANTÒNIO

13 de Junho, Santo António. A gente

Lembra este dia com especial ternura;

Só é pena que o faça unicamente

Em lembrança, em saudade, em fé segura!...

Não podemos correr, infelizmente,

António, ao teu encontro, ir à procura

Da tua festa colorida, ardente…

Pois vamos em regime de clausura.

Mas tu podias vir ao nosso barco,

E nós embandeirávamos em arco,

Para te receber com mil carinhos!...

Vem, e verás que não te falta nada,

Pois se quiseres, curvado na amurada,

Até podes falar aos teus peixinhos!...

Dia 14

I

O VELHO RELÓGIO

Ó meu velho relógio de parede,

De badaladas lentas e sonoras!...

Neste mundo de Deus tudo se mede,

Até a vida, que se mede em horas.

Horas de sonho, de ambição, de sede

De glória, de renuncias redentoras,

Quantas, velho relógio de parede,

Por mim bateste, lentas e sonoras!...

Hoje, sozinho, - como a vida é vária!...-

Solitário nesta casa solitária,

Cumpres talvez ainda o teu dever:

Paraste, mas quem sabe se, ao parar,

Não ficaste marcando, sem a dar,

A hora em que algum dia hei-de morrer!...

II

EXERCÍCIO

A sereia tocou subitamente,

Seis toques breves, outro prolongado;

Campainhas de alarme, febrilmente,

Puseram-se a vibrar por todo o lado.

Das cadeiras de bordo toda a gente

Se levantou de pronto. Alvoroçado,

Todo o barco surgiu rapidamente,

Cinto de salvação bem apertado.

Todos, os da segunda, os da terceira,

Correm buscando a sua baleeira,

Num movimento novo, extraordinário.

Neste mundo, em que a gente se aborrece,

Que seria de nós, se não houvesse,

De quando em quando um perigo… imaginário?!...

Dia 15

I

CAMAROTE 23

É um belo camarote, este que habito:

Primeira classe, chão atapetado,

Óptimas camas, ar condicionado

E o resto à altura do que fica dito.

O ruído das máquinas, do apito,

Chega-me aqui bastante atenuado.

É bom viajar assim, bem instalado,

Mesmo que o coração se sinta aflito.

Tenho o meu maple, a minha escrivaninha,

Uma sala de banho que é só minha…

Chego quase a esquecer o mundo externo.

Mas porque vou tão confortavelmente?!...

Ora, porque há-de ser? Naturalmente,

Porque viajo à custa do Governo. ?!...

II

PRIMEIRO NOCTURNO EM LÁ MENOR

Não me digam que não! Eu não sonhei!

Eu estava acordado àquela hora!

Era uma voz estranha, a que escutei

E me parece ouvir ainda agora.

Dir-se-ia um fio de ouro, ouro de lei,

E aquela voz nocturna, sedutora,

Vinha do mar, das ondas, que eu bem sei

Que o mar às vezes também chora.

Era o mar que cantava, ou talvez fosse

Uma sereia harmoniosa e doce

Uma sereia das que havia antes!...

Uma sereia, sim, uma daquelas

Que iam, cantando, atrás das caravelas,

Encorajando os nossos navegantes!...

Dia 16

I

ANIVERSÁRIO

Hoje foi dia de anos, mas, é claro,

Ninguém no barco o soube, além de nós.

Fizemos brindes, e com vinho caro,

Mas baixinho, em segredo, a meia voz.

Fazer anos a bordo é caso raro,

Por isso os festejámos, mesmo a sós.

Olhai, amigos, não façais reparo,

Pois brindámos também por todos vós.

Sobre as águas do mar, longe daqueles

Que vivem para nós a toda a hora,

Tal como nós vivemos para eles,

Que há-de a gente fazer nestes momentos,

Se não ir procurá-los, mar em fora,

Pela ponte dos nossos pensamentos?!... ?!...

II

POST-SCRIPTUM

Era tão bom guardar este segredo!

Tem um sabor tão doce a intimidade!...

Mas tudo e mundo espreita e, tarde ou cedo,

Vem sempre a descobrir a novidade.

Por mim, tal vigilância faz-me medo!

Mas que tem isso, enfim, se, na verdade,

Não houve meio de guardar segredo

E todo o barco soube a novidade?...

Surgiu um bolo de anos ao jantar,

Que o comissário fez confeccionar,

E música a propósito no fim.

Houve palmas também e a festejada,

Do seu lugar, sorriu, lisonjeada;

Gostou e, se gostou, foi bem assim. ?!...

Dia 17

I

A BORDO

Esta vida de bordo é curiosa!

Ontem ninguém aqui se conhecia;

Hoje sabe-se a história minuciosa

De cada membro desta confraria.

A vida, essa decorre descuidosa,

Desocupada, inútil e vazia,

Cada hora a escoar-se vagarosa

E cada dia igual a outro dia.

Todos trazem nos lábios um sorriso,

Como se o barco fosse um paraíso,

Um berço a balouçar, fofo e macio.

Contudo, só Deus sabe quantas dores,

Quantas angústias, quantos dissabores,

Quantos dramas irão neste navio!... ?!...

II

O PEIXE DE AÇO

Não sei porquê, não me abandona a ideia

De que este barco é um peixe colossal,

Maior que um tubarão, que uma baleia,

Um peixe enorme, todo de metal.

Um dia, ao ver-me passear na areia,

Engoliu-me no mar de Portugal

E nada agora, de barriga cheia,

Como quem volta de um festim real.

Nas entranhas do peixe, sua presa,

Fui afinal vítima indefesa

De tão insaciável apetite.

Mas não luto, não grito, não reajo;

Espero só que o monstro em que viajo

Se aproxime de terra e me vomite. ?!...

Dia 18

I

LINHA IMAGINÁRIA

O senhor comandante anunciou

Que havia festa no salão de bordo,

E logo toda a gente se animou

E toda agente se mostrou de acordo.

Até o próprio barco se alegrou,

Metálico e pesado, inchado e gordo.

E logo para p baile se ensaiou,

Ora dando a estibordo, ora a bombordo.

É que passamos hoje o equador.

Heróicos marinheiros do passado,

Quanto devemos nós ao vosso esforço!...

Logo vai haver festa, luz e cor;

Mas ninguém pensa em voz… Feio pecado!

E que vergonha eu sinto! Que remorso!... ?!...

II

CALMARIA

Eis-me nas águas já de outro hemisfério,

Eis-me seguindo a rota dos heróis

Que foram construindo o nosso império

À luz de outras estrelas, de outros sóis.

Lutando pela fé contra o mistério

Da linha que partia o mundo em dois,

De muitos este mar foi cemitério

E de quantos, Senhor, vindos depois!...

Mas tudo se venceu, ondas, rochedos,

Mistério, escuridão, monstros e medos,

Todos foram batidos ou dispersos,

Para que um dia um poeta de água doce,

Sobre este mar, tranquilamente, fosse

Compondo a vacuidade destes versos.

III

PARÁBOLA DO LAVRADOR

Era uma vez um pobre lavrador,

Que fora envelhecendo humildemente,

A trabalhar a terra com amor

Desde o sol nado até ao sol poente.

Regara o seu torrão com o seu suor,

Mas um dia, já fraco, já doente,

Para o experimentar, quis o Senhor

Que fosse arrotear terra diferente.

“ Senhor, disse o velhinho, em mim se faça

Vossa vontade soberana e forte,

E que ela, até ao fim, seja cumprida!

Mas depois disso, concedei-me a graça

De eu poder ir, Senhor, achar a morte

Na terra em que, por vós, deixo hoje a vida?!...

Dia 19

I

REALISMO

O mar, com seus abismos de voragem,

E o céu, com sua azul imensidão,

São constantes apelos da paisagem

À nossa eterna sede de evasão.

O próprio sentimento da viagem

É uma asa a lançar-me na ilusão.

Desaparece o real, dilui-se a imagem,

Fica apenas o anseio, a aspiração.

Tudo nos chama para o infinito!...

No entanto, o Baco é um âmbito restrito

Que ninguém tente, aliás, ultrapassar.

Chama o céu… chama o mar!...Mas junto a nós,

Cortando a imensa paz, soa uma voz:

“Nunca mais chega a hora do jantar”!...

II

ALEGRIA DE VIVER

Esta senhora gorda e prazenteira

Que a bordo vem desde o primeiro dia,

É a nota mais alegre da primeira,

Pois toda ela é paz e alegria.

Redonda e baixa, tipo vendedeira,

Tem por vezes a sua fantasia:

Anda de calças a manhã inteira,

Sem temer o grotesco que irradia.

Sorrindo sempre à esquerda e à direita,

Inalteravelmente satisfeita,

Dá gosto vê-la, dispõe bem, tem graça!...

Ontem no baile, então, fez sensação,

Quando surgiu, dançando, no salão,

Com um senhor de farta bigodaça!...

III

MONOTONIA

Onde é que o mar acaba? Onde vai ter?

Onde é que fica a terra prometida,

Que vamos demandando sem a ver,

Que iremos demandando toda a vida?!...

Que o nosso mundo é a terra, ouço dizer;

Mas a terra onde está? Anda perdida?!...

Casta noiva que insiste em se esconder,

Em seus líquidos véus toda envolvida.

Há oito dias que só vemos mar!

E sempre esta amurada a limitar

O mundo artificial em que vivemos!...

Temo que esta viagem não acabe!

Vamos gastando os nervos e quem sabe

Se não será por nada que os gastamos?!... !...

Dia 20

I

LUANDA

Foi um regresso à vida esta chegada

Ao porto de Luanda!... Ainda havia

Um róseo balbuciar da madrugada

Na luz e na frescura da baía.

Mas apesar da hora, ainda orvalhada,

Já tudo à nossa volta se movia.

Há no barco uma vida renovada

E, em tudo, mais frescor, mais alegria.

Giram barquinhos na baía quieta,

Os bagageiros são uma mancha preta

Que enche o barco de súbitos contrastes.

E enquanto tudo mexe ao sol e ao vento,

Sinto-me reviver no movimento

Dos negros, das canoas, dos guindastes. !...

Dia 21

SEGUNDO NOTURNO

EM SOL BEMOL MAIOR

Ouvindo a água que me embala o sono,

Fui construindo de água o meu castelo,

Castelo singular de um rei sem trono,

Mas rei de um reino estranhamente belo.

Ali hei-de esconder meu abandono

Em líquidos salões tornados gelo,

E o gelo será tal que o sol de Outono

Não logrará fundi-lo ou corrompê-lo

Ali hei-de esconder a minha mágoa

Entre colunas sumptuosas de água,

Que hão-de vencer o tempo, os cataclismos,

Ali hei-de reinar como um tirano,

Ser grande e vil, celestial e humano,

Buscando Deus à tona dos abismos. !...

Dia 22

SCHERZO

Aí vai esta barquinha carregada

De planos de futuro, de esperança,

De sonhos, de ilusões, talvez de nada,

Pois nada é o que jamais se alcança.

Aí vai esta barquinha!... Alvoroçada,

Esta pobre alma humana não descansa!

Se uma quimera vê despedaçada,

Logo atrás de outra, a estremecer, se lança.

No entanto, o mar, que nos conhece bem,

Sorri de tudo isso com desdém

E brinca, enquanto em vagas se arredonda.

“Aí vai esta barquinha”!... E zombeteiro,

Lança-nos de uma para outra onda,

Indiferente, a brincar o dia inteiro. !...

Dia 23

I

MISSA A BORDO

O nosso barco também tem capela

Não muito grande nem de muito estilo,

Mas o que importa, na verdade, é tê-la,

Ter o refúgio de um lugar tranquilo.

Não é grande, talvez não seja bela,

Mas que paz se respira em tudo aquilo!...

A alma sobe e Deus desce até ela,

Vem-lhe falar… E que bem sabe ouvi-lo!...

Todos os dias, sem fazer alarde,

Por duas vezes, de manhã e à tarde,

Um senhor padre ali celebra missa.

Ó mar, socega, vem rezar também!...

Ouve, como eu, a grande voz que vem

Falar de paz, de amor e de justiça!... !...

II

PODER SUPREMO

O espírito de Deus pairou no ar,

O espírito de Deus, omnipotente,

Baixou suave, milagrosamente,

Sobre a perpétua inquietação do mar.

Há pouco ainda, quem pudesse olhar

O largo oceano, rugidor, em frente,

Tê-lo-ia visto, sobranceiramente,

A sua própria força proclamar.

Mas o Divino Espírito baixou,

E toda a terra que o Senhor criou

Agora o louva, glorifica e canta.

Ó ondas, aplacai vosso furor,

Vosso orgulho abatei, que outro valor,

Mais alto que o vosso, se alevanta!... !...

III

JOÃO SEM TERRA

Terra de meus avós e de meus pais,

Cidade em que nasci, ridente céu,

E vós, ó meus amigos tão leais,

Corações que bateis a par do meu,

Oliveiras da serra, alvos casais,

Noites tranquilas de luar sem véu,

Humildes camponeses, onde estais?

Onde ficastes vós? Onde vou eu?!...

Onde vou eu, perdido, a navegar,

Ferido de morte, em busca do lugar

Onde tratar as minhas cicatrizes?!...

Judeu errante que me leste a sina,

Olha o que sou na vida pequenina:

Pobre João sem terra e sem raízes!... !...

Dia 24

I

FLOR EXÓTICA

Essa flor tropical, de tez queimada,

Que seria favor chamar trigueira,

Tem vinte anos, talvez, ou mais um nada,

E viaja sozinha na primeira.

Sua cor, à do ébano chegada,

Lembra terras de manga e de palmeira,

Mas é gentil, esbelta, bem lançada,

E tem um não sei quê de aventureira.

Veste-se bem, tem charme, é sensual,

Há um brilho de luxo oriental

Nas jóias que lhe adornam a figura.

Traz em volta uma corte masculina;

Pérola negra, o seu fulgor fascina!...

Anda Cleópatra em vilegiatura.

II

O PAPÃO

Dobrámos hoje o Cabo das Tormentas,

Esse que o nosso avô Bartolomeu

Também dobrou entre marés violentas,

Com vagas que chegavam quase ao céu.

Dobrámo-lo sem ondas rabugentas

Como aquelas que o nosso avô venceu;

Foram até tranquilas, sonolentas

As horas que o navio então viveu.

E foi pena que o velho Adamastor

Não tivesse exibido o seu furor,

Erguendo contra nós a voz tremenda!

Porque afinal na vida, que é entulho,

O que mais satisfaz o nosso orgulho

É vencer um papão… mesmo de lenda.!...

Dia 25

TRANSPLANTAÇÃO

Eu sou da terra das amendoeiras,

Dos pinheiros cismáticos, sombrios,

Dos choupos, que se alinham em fileiras,

Abrindo alas ao passar dos rios.

Sou da terra do luar, das oliveiras

Que fazem fundo a brancos casarios,

Das vinhas, das latadas, das parreiras,

Dos musgos cetinosos e macios,

Das papoulas, dos cravos encarnados,

Dos manjericos sempre perfumados,

Do alecrim, que tão bom cheiro dá.

Sou da terra da flor do verde pino…

Como ligar agora o meu destino

A uma flor rouxa de jacarandá?!... !...

Dia 26

I

DURBAN

As águas em que avança a nossa quilha

São já do Índico. Deus seja louvado!

Mar do oriente, mar de maravilha,

Por Gamas e Albuquerque navegado.

Em breve deixarei a minha ilha

Flutuante. Ainda bem! Estou cansado!

Vamos chegar não tarda nada. Filha,

Vai ver se temos tudo preparado.~

26 graus de latitude sul,

Mar calmo, vento brando, céu azul,

Vinte milha horárias, terra a oeste…

Ó senhor comandante, por quem é,

Levante a voz, mande pôr tudo a pé…

Que todo o barco se prepare e apreste!...

II

CHEGAR!...

Chegar… Mas chegar onde? A que paragem?

A que porto de abrigo ou de ilusão?...

Que me espera no fim desta viagem?

Que espero eu desta interrogação?...

Chegar!... Ó patrãozinho da estalagem,

Tem lugar para mim? Basta um colchão.

Não me demoro aqui, vou de passagem,

Nem sei bem para onde… sim ou não?...

Sim ou não?... Aí temos o dilema!

Quem encontrou a chave desta algema,

Grilheta que me tolhe mãos e pés?!...

Chegar!... Porquê chegar?!... sou um destroço…

E ainda espero, ainda me alvoroço!...

Ó alma, ó coração, como tu és!... !...

Dia 27

DESEMBARQUE

O navio atracou. Irreverente,

Deita a língua de fora ante a cidade.

A língua é a ponte, necessariamente,

Que outra não tem a esplêndida unidade.

Avançamos por ela lentamente,

Com enervante vagarosidade,

Espreitamos o cais por entre a gente,

Num misto de esperança e ansiedade.

Olha o Francisco Manuel além!...

Olha a Zezé, que já nos viu e vem

A correr para nós, erguendo o braço!...

Vamos depressa ao seu encontro, vamos!...

E é já em terra que nos abraçamos!...

Que fique em paz o grande peixe de aço!...

Lisboa – Lourenço Marques

Junho de 1968

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