
domingo, 4 de julho de 2010
Mário Simões Dias

quinta-feira, 25 de março de 2010
Mário Simões Dias [A] Violinista e Musicólogo (1903-1974)
Em Lisboa estudou violino com Francisco Benetó. Depois de alguns Concertos nessa cidade, em 1926 parte para Paris onde trabalha com Lucien Capet até à sua morte, em 1928. Dá concertos em Biarritz, Saint Jean de Luz e Paris (sala Pleyel), bem acolhidos pela crítica, mas regressa a Portugal em 1929 para fundar a «Academia de Música de Coimbra», projecto cujo arranque foi financiado por seu pai, e a cuja direcção técnica e artística, para além da docência de violino e outras disciplinas, dedicará a maior parte da sua vida. Para além dessa actividade, teve intensa participação na vida musical na época e na divulgação da música, como confrencista, através de artigos em jornais e revistas, em programas radiofónicos e na promoção de concertos que levaram a Coimbra grandes artistas nacionais e internacionais, inicialmente através da «Sociedade de Concertos» criada com a fundação da Academia de Música e posteriormente através de outras Organizações, como o Círculo de Cultura Musical, de cuja delegação em Coimbra foi director. Em 1968 foi para Lourenço Marques, acompanhando sua filha, genro e netos, com quem residia desde a morte de sua Mulher, em 1958, mantendo-se entretanto ligado à vida musical em Portugal por correspondência. Teve um programa regular de divulgação musical no Rádio Clube de Moçambique. Morreu nessa cidade em 1974. Para além de três livros de poesia e dois de musicologia publicados, deixou numerosos escritos e poemas não publicados e uma vasta obra dispersa.
Fundação e desenvolvimento da Academia de Música de Coimbra / Instituto de Música de Coimbra Sobre a fundação simultânea da Academia de Música de Coimbra e da Sociedade de Concertos, reporta-se às palavras de José Viana da Mota, à época Director do Conservatório Nacional de Música de Lisboa, a notícia deste evento: “Pela pena do nosso Director e de vários escritores foi proposta e defendida a fundação de um Conservatório de Música em Coimbra. Ocasião houve em que tudo indicava a sua abertura para breve, mas todas as demarches falharam. Consola-nos porém a boa notícia que nos chega pela mão de um amigo. Coimbra já tem uma Academia de Música. Quem venceu tanta dificuldade? O nome da pessoa, ou pessoas que sem receio pelos encargos, tomou sôbre os ombros a vida da Academia? A Arte Peninsular, quer pô-los bem em evidência. O Dr. Carlos Simões Dias de Figueiredo, é quem dá o seu auxílio financeiro à nova Academia e um dos Directores da Sociedade de Concertos de Coimbra que funciona no mesmo edifício da Academia. A Direcção da nova escola foi confiada à inteligência do Dr. Manuel da Câmara Leite e de Mário Simões Dias. Da direcção da Sociedade de Concertos faz parte também, além dos nomes indicados, Victor Doria. (…) Pela nossa parte, felicitamos efusivamente os ilustres Directores que com auxílio dos competentes professores que escolheram para dirigir as várias cadeiras, realisarão uma obra digna do maior aplauso e dentro da máxima simpatia.”[B] Na «Academia de Música de Coimbra» mais tarde (1933) Instituto de Música de Coimbra, leccionaram, entre outros, Pedro Prado, Arminda Correia, Macedo Pinto , Francine Benoit . Fernando Lopes Graça, classificado em 1º lugar em concurso para as vagas de professor de piano e de solfejo do Conservatório Nacional de Lisboa em 1931, mas impedido de ocupar o lugar em funções públicas e preso por motivos políticos, aceita de boa vontade o convite para docente da Academia de Música que exerce de 1932 até 1936, ano em que é de novo detido[C]. Neste período consolida-se uma amizade com Mário Simões Dias que durará toda a vida. A Sonatina nº 2 para piano e violino de Lopes Graça (1931) é dedicada a Mário Simões Dias e a sua estreia, em Coimbra (1935), é interpretada por ambos.[D] O ensino desta escola era oficializado, e todos os anos um Júri Constituído por professores do Conservatório Nacional se deslocavam a Coimbra para realizar os exames do curso geral. Os exames do curso superior eram feitos nos Conservatórios de Lisboa ou do Porto. Os diplomas conferidos pela Academia e mais tarde pelo Instituto eram assim equivalentes aos do Conservatório Nacional. Divulgação musical e musicologia Além da sua carreira como professor e concertista, não só nas salas de concertos mas também na Emissora Nacional (na época transmitidos em directo), exerceu actividade como crítico musical em jornais e revistas: foi colaborador regular na “Gazeta Musical e de Todas as Artes”[E] dirigida por João José Cochofel, assim como na página literária do comércio do Porto[F] e manteve durante mais de 20 anos (décadas de 50 e 60) um programa semanal na Emissora Nacional (2° canal). Em 70-74 manteve um programa de divulgação musical no Rádio Clube de Moçambique. Na década de 60 teve a seu cargo a cadeira de Música Portuguesa nos “Cursos de Férias da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra” [G]. A sua profunda cultura musical, a fluência e a clareza com que sabia expor os assuntos que tratava, faziam dele um conferencista muito solicitado: entre outras realizou palestras na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, na Casa de Inglaterra e nas Casa Alemã, estas com a colaboração de Maria Helena de Sá e Costa nas ilustrações musicais. Fez também uma série de conferências em vários pontos do país, organizadas pela Fundação Calouste Gulbenkian com a colaboração de João de Freitas Branco e Grazie e Vasco Barbosa. Dirigiu a delegação em Coimbra do Círculo de Cultura Musical. Colaborou no “Dictionnaire de la Musique” dirigido por Marc Honegger[H], director do Instituto de Musicologia da Universidade de Strasbourg, elaborando os artigos relativos à música portuguesa, e no Vol I, dedicado à música, da Enciclopédia Pêiade, dirigida por Rolland – Manuel (EDITORA ARCÁDIA,1965)[I]. Publicações: POESIA: * Outonos [J] * Puríssima [K] * Cântico das Urzes [L] ENSAlOS: * A Música Essa Desconhecida [M] * Aspectos da Canção Popular Portuguesa[N] [A] Referências gerais – Grande Enciclopédia Luso Brasileira e “The International who is who in music” , Who is Who in Music, Inc., 1951 [B] José Viana da Mota http://pt.wikipedia.org/wiki/Vianna_da_Motta “Homenagem do Conservatório Nacional de Música de Lisboa a Alexandre Rey Colaço” (caixa no fim do artigo), em “Arte Peninsular: revista mensal de arte”, Ano I, nº2 Abr/Mai de 1929, pag 64 {http://purl.pt/6485/4/ } [C] Ver notas biográficas sobre Fernando Lopes Graça, por exemplo em “public art sound” http://www.public-art-sound.com/Guest/Lopes-Graca.html ou em https://woc.uc.pt/fluc/getFile.do?tipo=2&id=1018 [D] Centro de Informação de Música Portuguesa (http://www.mic.pt/ ) referência à Sonatina nº2 de Lopes Graça, informação detalhada (http://www.mic.pt/cimcp/port/apresentacao.html?/cimcp/dispatcher?where=0&what=2&show=0&pessoa_id=199&lang=PT ) [E] Rede Municipal de bibliotecas de Lisboa - Registo de 2 artigos em http://catalogolx.cm-lisboa.pt/ipac20/ipac.jsp?session=1254F30C506U5.191134&profile=rbml&uri=link=3100018~!246186~!3100024~!3100022&aspect=basic_search&menu=search&ri=2&source=~!rbml&term=Dias%2C+M.+Sim%C3%B5es&index=AUTHOR#focus Gog perante a música - AUTOR(ES): Dias, M. Simões IN: Gazeta musical e de todas as artes. - Lisboa. - S.2, a.10, n.111 (1960), p. 69. - S.2, a.10, n.111 (1960), p. 75 CDU: 78 ; A lição de Mahler AUTOR(ES): Dias, M. Simões IN: Gazeta musical e de todas as artes. - Lisboa. - S.2, a.10, n.112-113 (1960), p. 99 [F] Ref em: AUTOR:BARRETO, COSTA (ORG.) TÍTULO: ESTRADA LARGA 2 ANTOLOGIA DO SUPLEMENTO "CULTURA E ARTE" DE "O COMERCIO DO PORTO" EDITORA PORTO CÓDIGO: 254911 NúMERO DE PáGINAS: 510 ANO DE EDIÇÃO: 1958 (Insere 2 artigos) [G] O livro “Aspectos da canção popular portuguesa” é Edição do Curso de Férias da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1952 [H] Saber o ano e edição (são muitas) – existe em bibliotecas … [I] Referência em “Associação Portuguesa Amigos do Órgão” – biblioteca - http://www.apao.web.pt/historia/biblioteca/livros/temas/musica.htm [J] Outonos / Mario Simões Dias, Coimbra, Coimbra Editora, 1921 ; Cota(s): AP 5855; 70 páginas http://books.google.pt/books?id=zKKhGwAACAAJ&dq=m%C3%A1rio+%22Sim%C3%B5es+dias%22&lr=&as_drrb_is=q&as_minm_is=0&as_miny_is=&as_maxm_is=0&as_maxy_is=&num=100&as_brr=0 [K] Purissima / Mario Simões Dias. Coimbra : Coimbra Editora, 1923. Cota(s): AP 6147 [L] Cântico das urzes, bentinha da nossa Beira : novela em verso / por Mário Simões Dias. [S.l. : s.n., s.d.] ( Coimbra : : Oficinas Gráficas da Coimbra Editora, 1936). Cota(s): AP 4389 http://www.biblartepac.gulbenkian.pt/ipac20/ipac.jsp?aspect=basic_search&index=.GW&ipp=20&menu=search&npp=20&profile=ba&ri=&spp=20&term=cantico&x=1&y=1# [M] A música essa desconhecida / Mário Simões Dias. Coimbra : Centro Universitário, 1951.RS 437 http://books.google.pt/books?id=zKKhGwAACAAJ&dq=m%C3%A1rio+%22Sim%C3%B5es+dias%22&lr=&as_drrb_is=q&as_minm_is=0&as_miny_is=&as_maxm_is=0&as_maxy_is=&num=100&as_brr=0 [N] Aspectos da canção popular portuguesa / M. Simões Dias - Coimbra : Curso de Férias da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1952 (http://www.bibliotecas.cm-amadora.pt/docbweb/plinkres.asp?Base=ISBD&Form=COMP&SearchTxt=CL+784.4(469)&StartRec=10&RecPag=5 )
domingo, 18 de outubro de 2009
JOÃO DA MALHA (Poema em verso, mais tarde posto em prosa)- por Mário Simões Dias
. Lento, começa A caminhar pela vereda estreita, Aberta ao longo da propriedade, E, pesadão, Grave, sem pressa, Aqui se curva sobre um talhão, Além ajeita, Aqui contempla, mais além espreita As mil promessas da novidade. . O sol ainda brilha, ainda há calor, E, sob a luz que a banha, A terra, a dar-se toda ao sol ardente, Ao escaldante amor Desse amigo distante, Sente a volúpia estranha De quem se entrega voluntáriamente A dois braços de fogo devorante. . Amor fecundo, Volúpia luminosa, enternecida, Orgulho de sofrer no mais profundo Do seio materno ... Contentamento da missão cumprida, Renovo eterno Da mesma vida!... . João da Malha Não sabe definir tudo o que sente E a terra lhe sugere; Mas qualquer coisa que no ar se espalha E que da terra vem, Fá-lo pensar inconscientemente Numa mulher Que vai ser mãe. . E começa a lidar. Por entre as couves altas, devagar, Não vá tocar nalguma, A enxada vai abrindo Estreito rêgo, longo e coleante, Por onde a água há-de saltar, sorrindo, Levando a cada uma, Após um dia sofocante, Um pouco de seu frescor Reanimador E fecundante. . E João da Malha Cisma, enquanto trabalha. Porque não há-de ser assim?... A terra Leva tudo o que um homem pode dar, O trabalho, os cuidados, o suor, E para lhe arrancar Aquilo que ela encerra, O vinho,o pão, Senhor!... Quanto martírio e quanta ralação!... . E depois, melindrosa que ela é!
Hoje p.rometedor e Como um sorriso de criança, Amanhã, quem a viu e quem a vê! Porque caíu geada, Porque o vento soprou, ei-la mudada, Perdido numa hora, Um ano de esperança!... . É o mildium na uva, É a moléstia a dar nos batatais... O bicho que roi tudo e tudo estraga... A seca... a chuva... A neve... os vendavais.,..
Que às vezes também são behttp://www.blogger.com/img/blank.gifm boa praga!....
.. Ainda o ano passado, As oliveiras a vergar ao peso Do fruto já vingado, E nisto vem um vento de tal raça, Um furacão tão tezo, Que deitou tudo abaixo!... Uma desgraça!... . E é isto a vida de quem sacha e cava E rega e lavra e monda E revolve hora a hor a terra ingrata!... Olhos sempre no chão, vontade escrava Da terra,que não sabe dizer bonda A quem a amanha e trata. . Sempre uma lida insana! Sempre a espinha dobrada Sôbre a enxada, Ou sobre a foice, quando a ceifa aponta! E sempre a mesma cabana, Sempre a mesma telha vã, O mesmo caldo, e sempre incerta a conta Do que se tem para amanhã!... . Os gozos onde estão?... É só à noite uns dedos de cavaco À porta da loja Do Zé do Paleio, Ou então, Quando um homem se arroja A perder um pataco, Uma bisca lambida ou um sete-e-meio... . E daqui não se sai! É como a roda do rio Sempre na mesma cantiga. O filho faz o que fazia o pai, Sem uma fuga,sem um desvio, Sem uma queixa pela fadiga. . Raio, que vida esta! Até um homem deixa de ser homem, Para ser uma besta, Impassível diante do que sente, Das mágoas que o consomem Ininterruptamente!... . Solene como um rei, o sol declina, Mas tão manso, tão sem pressa, Que a gente imagina, Ao vê-lo baixar, Que o sol já começa A sentir pena de nos deixar. . Em baixo, as casas da aldeia Espalham-se no vale extenso e aberto Ao ar e ao sol E, mais além, num zig-zag incerto, A estrada nova coleia, Lembrando gigantesco caracol. . Há manchas na paisagem, Manchas amarelinhas de trigais Em terras baixas de regadio, Manchas verdes de folhagem, O verde claro dos olivais, O verde escuro dos pinheirais, Grave e sombrio. . E ainda o verde tenro, amarelado, Das vinhas que, com graça luninosa, Trepam encosta arriba, Mostrandoos cachos de ouro ao sol dourado, Como dozela vaidosa Que seus enfeites exiba. . Pelas altas montanhas, Onde, por entre pedras calcinadas, Nem musgo rasteiro espreita Ou deita Sua breve penungem, Por essas terras altas, desoladas, Há largas manchas castanhas E velhos tons de ferrugem. . Mas a paisagem ri suavemente E canta sob o sol que tudo alegra E tudo acaricia. Só João da Malha,olhando a terra, sente Que a vida é negra, Negra e sombria!... . ............................................................................................ . Alegre, verdejante, sossegada, A Pedruguinha, A meio do outeiro, Fica em poial risonho alcandorada, Como avezinha No seu poleiro. . Não é grande, isso sim!... Mas faz milagres o amor de quem Trabalha no que é seu, E assim, A Pedruguinha amanhada, Bem sachada, Bem lavrada Por quem a vida lhe deu, Tem os aspecto de alguém Que quiz pagar com bençãos todo o bem Que recebeu. . Nela, ou por milagre ou por encanto, O suor fez-se planta, fruto e flor, A humildade vitória, A luta canto, E o gesto rude, para sua glória, Benção e graça do Senhor. . Nela, tudo sorri, As folhas largas como mãos abertas, Que do cuval se estendem, As longas vagem que pendem Das vara dos feijoeiros, As bojudas abóboras, que ali Lembram calvas cabeças descobertas, E os próprios rubros tomates São risadas escarlates Que irrompem dos tomateiros. . Ao canto do poial, Robusta, musculosa, quase atlética, A despeito de um ar suave de avozinha, A figueira negral Empresta certa estética, Imprime certo tom patriarcal À Pedruguinha. . E gentil, altaneira, Ao ventozinho leve que começa A soprar sorrateiro, Um campinho de milho ondula,ondeia E agita sorridente uma promessa Em cada espiga cheia. . João da Malha Conhece há muito tempo esse recanto; Por lá brincou petiz E, homem feito, já por lá trabalha Há muito ano Num labor insano, Amanhando, Sachando, Semeando, Levando a cada canto A vida a uma semente, a uma raiz. . De tanto ver no solo projectada A sombra do seu vulto, Como figura animada A repetir-lhe os gestos vigorosos, Há dentro dele o sentimento oculto, A secreta noção De que os traços sinuosos Da sombra que o retrata, muda e calma, São, no solo que ele ama, a projecção Do seu ser, em corpo e alma. . Na terra que cultiva, Algo da sua vida se insinua E se renova nas espigas cheias, Alguma coisa bem viva, Cuja vida já foi sua, Sangue que já correu nas suas veias. . Por isso, limitada a aspiração Da sua vida ao chão que lhe sorri, Correm-lhe os dias naturais, felizes, E sente-se irmão Das plantas que ali Colheram raizes. . Agora, porém, Alguma coisa dentro dele existe Que o faz olhar a terra misteriosa De diversa maneira, Alguma coisa o detém, O traz alheio e triste, O livra da atracção, tão poderosa, Com que a terra o prendeu a vida inteira. . Constante sobresslato Faz-lhe da vida frágil batelinho Em luta no mar alto, E a estrela cintilante, Que do norte o guiava no caminho, Como astro bendito, Vagueia agora, fugitiva, errante, Perdida no infinito. . Outrora Seguia confiante a sua estrada, Única aberta sob um sol de festa; Agora Vê-se diante de uma encruzilhada, Sem decisão para tomar por esta Ou por aquela estrada. . E contudo, É preciso fixar-se, dar um norte, À vida que não para, E não cruzar os braços... sobretudo Ter coragem, ser forte E olhar a vida em frente, cara a cara. . E João da Malha, João da Malha Cisma, enquanto trabalha. . Após imagem desenterra imagem, Sucedem-se lembranças De mil castelos que no ar ergueu; É toda uma paisagem Que dentro dele se estende e desenrola, Num agitar confuso de esperanças, De saudades da vida que viveu, Fumo que ao longe se evola. . Porém, a sobrepor-se a tudo quanto Sua lembrança evoca, A afagar-lhe os desejos, a ambição, Surge lá lomge, tentadora, envolta Em misterioso encanto, A terra da tentação, A terra ardente, cuja luz sofoca, Mas cujo seio, a abrir-se em pomos loiros, É uma torrente à solta, Um perpétuo jorrar de mil tezoiros!... . O Brasil!... O Brasil!... O mistério, o país maravilhoso Que as espumas ocultam!... Como nos longes seus tesoiros mil, Fazendas, cafèzeiros, sol radioso, Aos olhos dele avultam!... . Muitas vezes ouvira já falar Nesse caudal gigante que parece Que no há-de ter fim!... Mas até lhe custava acreditar Que no mundo houvesse Uma terra assim!... . Mas era verdade! Ele bem vira, com seus próprios olhos, Como o Cristiano do Sobral voltara: Ar de cidade, Notas aos molhos, Um cheiro a rico de virar a cara! . Sempre bem posto, Bem preparado, Dedos cheios de aneis, Um riso de quem anda bem disposto, E então tratado Que nem os reis!... . Boa gravata ao pescoço, Boa bota de verniz, De polimento ou lá que raio é!... Enfim, um brasileiro, um ricalhoço, Que, pelo que se diz, Nem sabe ao certo quanto tem até!... . Já se sabia que ele estava bem. Ainda antes de vir, Comprara o terreno da Ínsua da Vasa, Que o Rasca vendera por não ter vintém! E agora o Cristiano já dissera Que ía construir Uma grande casa, Como ninguém na aldeia inda tivera! . Que tal seria a casa, era de ver! Alta, caiada, Varandas corridas, E lá por dentro salas e mais salas!... E ele, João da Malha, sem poder
Largar a enxada Sempre amarrado à mais ruim das vidas, A sofrer, a roê-las, a amargá-las!... . E tudo porquê ? Porque não fôra, como o Cristiano, Capaz de arremeçar consigo até À outra margem do largo oceano. . Tudo porque deixara A rotina lançar-lhe aos pulsos duros Apertada cadeia E porque desde então assim ficara, Preso por ela, dentro dos muros Da sua aldeia. . Forte imbecil!... Sempre amarrado ao mísero torrão, Feito escravo de todos!... Que papalvo!... E o Brasil, o Brasil Ao alcance da mão, Que era só resolver-se e estava salvo!... . E afinal porque não se resolvia?!... A todo o tempo é tempo de emendar Um disparate, um erro! Deitaria consigo, deitaria! Era novo, sabia trabalhar, Tinha uns braços de ferro. . Para a passagem, isso é que era pior!... Mas que diabo, Não fosse outro o torpeço!... Não tinha a Pedruguinha o seu valor?... Vende-la-ia, pois então, e ao cabo, Compraria mais terras no regresso. . Vendê-la-ia, sim, E o que de lá mandasse em cada carta Que escrevesse à mulher, Raios a partissem se, enfim, Não chegasse à larga,à farta Para a tropa cá viver!... . E João da Malha, Vendo-se já na terra abençoada Das riquezas sem conta, Já consigo sorria: “Adeus, vida infeliz de quem trabalha!... Adeus, alvião!... Adeus enxada” !... A sua decisão estava pronta: Iria. . ............................................................................................................................................... . Cansado de cismar, Reparando que o sol ía fugindo, Que se acabava o dia, João da Malha deixara-se tombar Sobre uma pedra, a saborear, sorrindo, A vida que antevia... . Em roda, Uma paz suavíssima,discreta, Descia sobre a terra toda E, docemente, Suavemente, A tarde,com seus últimos lampejos, Serena, quieta, Fôra subindo pela vertente E agora, presa nos altos cumes Por fios breves, quase a quebrar, Procurando outros céus a que se acoite, A tarde, doce como os perfumes Que andam no ar, Mandava à terra seus mil desejos De boa noite. . E a noite pelo vale, Com levezas carinhosas, Toda desvelo, quase amternal, Já começava pousando Sobre o fundo das quebradas Seus novelos de sombras silenciosas, Que apouco e pouco se iam desdobrando, Desapertando E avolumando, Como compridas meadas Desenroladas. . E nesse aproximar de sombra e luz, Ambas suaves, ambas esbatidas, Passa uma branda ternura Que envolve, que alicia, que seduz... Como se luz e sombra, assim inidas, Tão serenas e calmas, Espalhassem mais paz e mais doçura, Mais quietação sobre as almas. . Mansa e mansa, Como gotinha de água presistente, Que teima em fazer branda a pedra dura, Essa paz envolvente, Respiração da terra que descansa Em suave torpor, Entra, penetra, acaricia e espalha, A pouco e pouco, um singular frescor Na alma obscura de João da Malha. . E a noite cai. A luz,cada vez mais esmaecida, Cada vez mais distante, É como nota perdida Que se esvai, Toda em ecos diluída, Toda em suspiros de agonizante. E João da Malha, pleno de esperança, Sonha, enquanto descansa. . Uma voz doce como voz materna, Baixinha e segredante, Desprende-se de tudo o que o circunda, Sombra de voz, macia e terna, Que vem, sabe-se lá!... da luz... do instante... Do céu... da terra... do espaço... Sabe-se lá!... mas que de paz o inunda E o toma todo, como um longo abraço!...
. A princípio não sabe donde parte Esse fio de voz; Parece-lhe que vem de toda a parte E de parte nenhuma, Num sussurrar de estranhos fala-sós, Embuscados, ocultos pela bruma. . Depois, pouco a pouco, a voz ressalta Do silêncio, mais nítida, mais clara, Mais alta, Num segredar nenos incerto, E João da Malha então repara Que a voz lhe fala ali bem perto: . “Ouve, João da Malha, escuta um pouco: A noite desce por sobre nós; Que funda mágua a minha!... Não sabes quem te fala? Pobre louco!... Já não conheces a minha voz, A voz da tua amada Pedruguinha!... . Há meia hora que chegaste aqui, E, enquanto trabalhavas,ou fingias Que trabalhavas, distraído e lento, Fui procurando decifrar em ti O enigma que escondias No fundo do pensamento. . E decifrei-o, Mas como decifrá-lo me custou, Me encheu de mágua e de receio! Como cada raiz em mim cravada Se contraíu de espanto e se quedou Entristecida, pasmada!... . Pois quê, vais-nos deixar?!... Vais cortar esse laço que nos liga Há tantos anos?... Senhor!... Como se pode assim despedaçar Uma união tão funda e tão antiga, Sem tremer de pavor?!... . Há quantos anos, quantos, aqui vinhas Todos os dias, sem faltar nenhum, A rodear-me sempre de cuidados! E que cuidados tinhas, Não fosse faltar-me algum, Nos dias próprios, de antemão marcados!... . Eu já sabia: Se o sol em agosto me abrasava em fogo E me tomava a sede angustiante, A tua enxada surgia, Solícita,abrindo logo Caminho ao veio de água refrescante. . E quando, findo aquele esforço ingente De produzir mil frutos, me quedava Exausta, ao cabo da missão cumprida, A tua mão deligente Logo vinha e me estrumava, A dar-me força nova e nova vida. . Por isso me entregava toda inteira A cumprir meu destino, satisfeita De o ter tão alto e tão nobre, E sofria, e lutava de maneira Que no dia festivo da colheita, Nesse ao menos, tu fosses menos pobre. . Com que profundo orgulho, Com que estremecimentos silenciosos De um amor ignorado, Te via, triunfante, ao sol de Julho, Erguer as mãos e, nelas, gloriosas, Os frutos que só eu te havia dado!... . Era um encantamento, Uma hora de comoção, Para mim, a da ceifa!... Num momento, As foices, vibrando, Cortavam então Espigas que de há muito, sem cessar, Eu vinha criando Só para tas dar!... . Nem tu calculas a ternura imensa Com que eu alimentava, dia a dia, Cada humilde semente, Sem aspirar a outra recompensa, Além da alegria De te ver contente!... . Mas como o tempo foge!... Como tudo se extingue, se desfaz Por sob o azul dos céus!... É breve e fugitivo o dia de hoje! Como tudo é fugaz, Neste mundo de Deus!... . Tudo afinal acaba! De hoje em diante, Não mais procurarás tornar a ver-me, Para que eu te não lembre a minha dor; Eu ficarei esperando instante a instante, Passiva e enerme, O dia em que hei-de ser de outro senhor. . Como isto me apavora!... Como a separação que se aproxima Me faz estremecer!... Dentro de mim, cada raiz te chora, Cada semente obscura se lastima Da vida que vai ter!...” . Cala-se a voz da terra angustiada. Em volta, a noite, abrindo longamente Suas asas de sombra, Ficara absorta, parada, Suspensa dessa voz que, pungente, Até a própria escuridão assombra. . Atentas sentinelas Espalhadas nos céus silenciosos Como dourada poalha, As primeiras estrelas Parecem olhos a espreitar, ansiosos, O pobre João da Malha. . E João da Malha sente aquele olhar, Sente que tudo em roda Espera seja o que for, E parece esmagá-lo esse esperar Da terra toda Em redor!... . Sùbitamente, O atavismo de trinta gerações, Que da terra viverm dia a dia, Acorda nele o grande amor latente Que, como brasa a arder sob tições, Dentro dele existia. . “Tens razão, Pedruginha! Como pude eu alimentar a ideia De um dia te deixar?!... A tua vida está ligada à minha; Somos dois elos de uma cadeia, Não nos podemos separar”!... . E enquanto os astros sobem no horizonte, João da Malha, O heroi obscuro, o eterno lidador, Põe-se a caminho, levantando a fronte, Como no fim de uma batalha Um rei que fica vencedor. . . Coimbra, 31-12-1940.
quarta-feira, 14 de outubro de 2009
HEROI OBSCURO - por Mário Simões Dias
. Em teu lidar constante eu advinho A força antiga,que julguei perdida, O esforço criador do pão,do vinho, Da alegria afinal da própria vida
. Humilde lidador, neto distante Desse outro herói, que, a golpes de montante, Fêz a nossa terra deste canto em flor!...
. Também tu, sob os sol, a tez queimada, Ganhas, a golpes da robusta enxada, O nome heroico de conquistador . M.Simões Dias
domingo, 11 de outubro de 2009
Mário Simões Dias - No Diário de Notícias 5-2-1930
sábado, 3 de maio de 2008
publicações de Mário Simões Dias - 1903
O PADRE PATAGÓNIA
segunda-feira, 8 de janeiro de 2007
Mário Simões Dias
LISBOA – LOURENÇO MARQUES
DIÁRIO DE BORDO
Ó mar largo, ó mar salgado,
De onde te vem tanto sal?...
Vem das lágrimas choradas
Nas praias de Portugal !...
(Popular)
Lisboa 11 de Junho.
I
EMBARQUE
11 de Junho, terça feira. Marco
Com esta data o dia da partida.
Subi há duas horas para o barco
E vivo ainda a dor da despedida.
Tudo isto é ainda novo para mim, que embarco
Pela primeira vez na minha vida.
Julgo-me neto de Gonçalves Zarco,
Pois também levo as ondas de vencida.
Mas vou para mais longe; na viagem,
Hei-de mesmo avistar-me, de passagem,
E no Zaire e no Cabo hei-de mostrar-lhes
O luxo do meu barco e perguntar-lhes:
“Então, que dizem vossas senhorias”?!...
II
MAREANTES
“Então que dizem”!… Rijos marinheiros,
Que em tão frágeis barquinhos se arriscavam,
Com cartas de marear e com roteiros
Que ainda tão longe da verdade andavam!...
Meio experientes, meio aventureiros,
Quantas traições no mar os esperavam!
Mas guiava-os o brilho dos luzeiros
Dos reinos, dos Impérios que buscavam.
Mas eu não busco nada. Impérios vãos,
Se um dia os tive presos entre as mãos,
Foi só para entre as mãos os desfazer.
Reinos, impérios… tudo isso é pó!...
Hoje, Senhor, procuro só
Sete palmos de terra onde morrer.
III
LARGADA
Como a manobra do desatracar
Leva tempo a fazer!... Que lentidão
No recolher dos cabos, no ligar
Das máquinas que gemem no porão!...
Com elas, todo o barco há-de vibrar…
E eu sinto, nessa oculta vibração,
Qualquer coisa de humano a latejar,
Como o bater de um grande coração.
Ó navio das minhas decepções,
Sinto no sangue as tuas pulsações,
Somos irmãos neste momento amargo!...
Pesa-te, eu sei, um coração desfeito!
Que importa o peso que me esmaga o peito?...
Quebra as amarras, vamos! Faz-te ao largo!...
Dia 12
I
MAR ALTO
Neste segundo dia, quarta-feira,
Já não se avista terra da amurada.
A paisagem fatiga, é uma canseira…
Só mar e céu, só mar e céu, mais nada!...
Sente-se a gente como prisioneira
Destes cem metros em que faz jornada.
E há aí quem passe nisto a vida inteira!
Pobre gente do mar, sempre isolada!...
Só, no meu camarote, não resisto:
Sucumbo à nostalgia, a tudo isto,
Sem nada em que me apoie ou me concentre!...
Lanço-me sobre a cama, como um feixe,
E julgo-me engolido por um peixe
Enorme, que me leva no seu ventre.
II
O NAVIO
Percorro palmo a palmo, passo a passo,
De estibordo a bombordo, à popa e à proa,
Este gigante de madeira e aço
Que apita e geme e ronca e vibra e soa.
Um mundo flutuante!.. E enquanto faço
A todo o barco uma inspecção à-toa,
Esse monstro que vence tempo e espaço
Enche de espanto a minha vil pessoa.
Entro em salas de música, de fumo,
Descubro, neste vaguear sem rumo,
Salões, espelhos, lojas e piscinas.
E pasmo de pensar que tudo isso
É posto pela técnica ao serviço
Das nossas vidas pequeninas!...
III
SAUDADE
Tudo ficou à popa do navio!...
Tudo ficou nesse torrão sagrado,
Onde lavrei a terra ao sol de estio
E um reino tive de luar banhado!...
Lá me correu a vida como um rio
Que vai descendo para o mar salgado
Bucólico hoje, como argênteo fio,
Amanhã tumultuoso e revoltado.
Lá te deixei a ti, ó doce fada,
No silêncio da última morada
Que pude erguer-te, ansioso e comovido!...
Possa eu algum dia regressar
E vir, junto de ti, continuar
O nosso belo sonho interrompido!...
Dia 15
I
ESCALA
Parámos esta noite no Funchal;
Vinhos, bordados, bons hotéis, turismo,
Móveis de verga, clima sempre igual,
Cor regional e cosmopolitismo…
Eis um belo cartaz que, por sinal,
Não falseia a verdade, o realismo.
Tudo se encontra nesta terra ideal…
Bênção de Deus a emergir do abismo!
Mas a ilha possui outra beleza
Além daquelas, a da natureza
Abrupta e forte, primitiva e crua.
Outra beleza, sim, porque afinal,
A estranha força da beleza é tal
Que até no próprio horrível se insinua.
II
SANTO ANTÒNIO
13 de Junho, Santo António. A gente
Lembra este dia com especial ternura;
Só é pena que o faça unicamente
Em lembrança, em saudade, em fé segura!...
Não podemos correr, infelizmente,
António, ao teu encontro, ir à procura
Da tua festa colorida, ardente…
Pois vamos em regime de clausura.
Mas tu podias vir ao nosso barco,
E nós embandeirávamos em arco,
Para te receber com mil carinhos!...
Vem, e verás que não te falta nada,
Pois se quiseres, curvado na amurada,
Até podes falar aos teus peixinhos!...
Dia 14
I
O VELHO RELÓGIO
Ó meu velho relógio de parede,
De badaladas lentas e sonoras!...
Neste mundo de Deus tudo se mede,
Até a vida, que se mede em horas.
Horas de sonho, de ambição, de sede
De glória, de renuncias redentoras,
Quantas, velho relógio de parede,
Por mim bateste, lentas e sonoras!...
Hoje, sozinho, - como a vida é vária!...-
Solitário nesta casa solitária,
Cumpres talvez ainda o teu dever:
Paraste, mas quem sabe se, ao parar,
Não ficaste marcando, sem a dar,
A hora em que algum dia hei-de morrer!...
II
EXERCÍCIO
A sereia tocou subitamente,
Seis toques breves, outro prolongado;
Campainhas de alarme, febrilmente,
Puseram-se a vibrar por todo o lado.
Das cadeiras de bordo toda a gente
Se levantou de pronto. Alvoroçado,
Todo o barco surgiu rapidamente,
Cinto de salvação bem apertado.
Todos, os da segunda, os da terceira,
Correm buscando a sua baleeira,
Num movimento novo, extraordinário.
Neste mundo, em que a gente se aborrece,
Que seria de nós, se não houvesse,
De quando em quando um perigo… imaginário?!...
Dia 15
I
CAMAROTE 23
É um belo camarote, este que habito:
Primeira classe, chão atapetado,
Óptimas camas, ar condicionado
E o resto à altura do que fica dito.
O ruído das máquinas, do apito,
Chega-me aqui bastante atenuado.
É bom viajar assim, bem instalado,
Mesmo que o coração se sinta aflito.
Tenho o meu maple, a minha escrivaninha,
Uma sala de banho que é só minha…
Chego quase a esquecer o mundo externo.
Mas porque vou tão confortavelmente?!...
Ora, porque há-de ser? Naturalmente,
Porque viajo à custa do Governo. ?!...
II
PRIMEIRO NOCTURNO EM LÁ MENOR
Não me digam que não! Eu não sonhei!
Eu estava acordado àquela hora!
Era uma voz estranha, a que escutei
E me parece ouvir ainda agora.
Dir-se-ia um fio de ouro, ouro de lei,
E aquela voz nocturna, sedutora,
Vinha do mar, das ondas, que eu bem sei
Que o mar às vezes também chora.
Era o mar que cantava, ou talvez fosse
Uma sereia harmoniosa e doce
Uma sereia das que havia antes!...
Uma sereia, sim, uma daquelas
Que iam, cantando, atrás das caravelas,
Encorajando os nossos navegantes!...
Dia 16
I
ANIVERSÁRIO
Hoje foi dia de anos, mas, é claro,
Ninguém no barco o soube, além de nós.
Fizemos brindes, e com vinho caro,
Mas baixinho, em segredo, a meia voz.
Fazer anos a bordo é caso raro,
Por isso os festejámos, mesmo a sós.
Olhai, amigos, não façais reparo,
Pois brindámos também por todos vós.
Sobre as águas do mar, longe daqueles
Que vivem para nós a toda a hora,
Tal como nós vivemos para eles,
Que há-de a gente fazer nestes momentos,
Se não ir procurá-los, mar em fora,
Pela ponte dos nossos pensamentos?!... ?!...
II
POST-SCRIPTUM
Era tão bom guardar este segredo!
Tem um sabor tão doce a intimidade!...
Mas tudo e mundo espreita e, tarde ou cedo,
Vem sempre a descobrir a novidade.
Por mim, tal vigilância faz-me medo!
Mas que tem isso, enfim, se, na verdade,
Não houve meio de guardar segredo
E todo o barco soube a novidade?...
Surgiu um bolo de anos ao jantar,
Que o comissário fez confeccionar,
E música a propósito no fim.
Houve palmas também e a festejada,
Do seu lugar, sorriu, lisonjeada;
Gostou e, se gostou, foi bem assim. ?!...
Dia 17
I
A BORDO
Esta vida de bordo é curiosa!
Ontem ninguém aqui se conhecia;
Hoje sabe-se a história minuciosa
De cada membro desta confraria.
A vida, essa decorre descuidosa,
Desocupada, inútil e vazia,
Cada hora a escoar-se vagarosa
E cada dia igual a outro dia.
Todos trazem nos lábios um sorriso,
Como se o barco fosse um paraíso,
Um berço a balouçar, fofo e macio.
Contudo, só Deus sabe quantas dores,
Quantas angústias, quantos dissabores,
Quantos dramas irão neste navio!... ?!...
II
O PEIXE DE AÇO
Não sei porquê, não me abandona a ideia
De que este barco é um peixe colossal,
Maior que um tubarão, que uma baleia,
Um peixe enorme, todo de metal.
Um dia, ao ver-me passear na areia,
Engoliu-me no mar de Portugal
E nada agora, de barriga cheia,
Como quem volta de um festim real.
Nas entranhas do peixe, sua presa,
Fui afinal vítima indefesa
De tão insaciável apetite.
Mas não luto, não grito, não reajo;
Espero só que o monstro em que viajo
Se aproxime de terra e me vomite. ?!...
Dia 18
I
LINHA IMAGINÁRIA
O senhor comandante anunciou
Que havia festa no salão de bordo,
E logo toda a gente se animou
E toda agente se mostrou de acordo.
Até o próprio barco se alegrou,
Metálico e pesado, inchado e gordo.
E logo para p baile se ensaiou,
Ora dando a estibordo, ora a bombordo.
É que passamos hoje o equador.
Heróicos marinheiros do passado,
Quanto devemos nós ao vosso esforço!...
Logo vai haver festa, luz e cor;
Mas ninguém pensa
E que vergonha eu sinto! Que remorso!... ?!...
II
CALMARIA
Eis-me nas águas já de outro hemisfério,
Eis-me seguindo a rota dos heróis
Que foram construindo o nosso império
À luz de outras estrelas, de outros sóis.
Lutando pela fé contra o mistério
Da linha que partia o mundo em dois,
De muitos este mar foi cemitério
E de quantos, Senhor, vindos depois!...
Mas tudo se venceu, ondas, rochedos,
Mistério, escuridão, monstros e medos,
Todos foram batidos ou dispersos,
Para que um dia um poeta de água doce,
Sobre este mar, tranquilamente, fosse
Compondo a vacuidade destes versos.
III
PARÁBOLA DO LAVRADOR
Era uma vez um pobre lavrador,
Que fora envelhecendo humildemente,
A trabalhar a terra com amor
Desde o sol nado até ao sol poente.
Regara o seu torrão com o seu suor,
Mas um dia, já fraco, já doente,
Para o experimentar, quis o Senhor
Que fosse arrotear terra diferente.
“ Senhor, disse o velhinho, em mim se faça
Vossa vontade soberana e forte,
E que ela, até ao fim, seja cumprida!
Mas depois disso, concedei-me a graça
De eu poder ir, Senhor, achar a morte
Na terra em que, por vós, deixo hoje a vida?!...
Dia 19
I
REALISMO
O mar, com seus abismos de voragem,
E o céu, com sua azul imensidão,
São constantes apelos da paisagem
À nossa eterna sede de evasão.
O próprio sentimento da viagem
É uma asa a lançar-me na ilusão.
Desaparece o real, dilui-se a imagem,
Fica apenas o anseio, a aspiração.
Tudo nos chama para o infinito!...
No entanto, o Baco é um âmbito restrito
Que ninguém tente, aliás, ultrapassar.
Chama o céu… chama o mar!...Mas junto a nós,
Cortando a imensa paz, soa uma voz:
“Nunca mais chega a hora do jantar”!...
II
ALEGRIA DE VIVER
Esta senhora gorda e prazenteira
Que a bordo vem desde o primeiro dia,
É a nota mais alegre da primeira,
Pois toda ela é paz e alegria.
Redonda e baixa, tipo vendedeira,
Tem por vezes a sua fantasia:
Anda de calças a manhã inteira,
Sem temer o grotesco que irradia.
Sorrindo sempre à esquerda e à direita,
Inalteravelmente satisfeita,
Dá gosto vê-la, dispõe bem, tem graça!...
Ontem no baile, então, fez sensação,
Quando surgiu, dançando, no salão,
Com um senhor de farta bigodaça!...
III
MONOTONIA
Onde é que o mar acaba? Onde vai ter?
Onde é que fica a terra prometida,
Que vamos demandando sem a ver,
Que iremos demandando toda a vida?!...
Que o nosso mundo é a terra, ouço dizer;
Mas a terra onde está? Anda perdida?!...
Casta noiva que insiste em se esconder,
Em seus líquidos véus toda envolvida.
Há oito dias que só vemos mar!
E sempre esta amurada a limitar
O mundo artificial em que vivemos!...
Temo que esta viagem não acabe!
Vamos gastando os nervos e quem sabe
Se não será por nada que os gastamos?!... !...
Dia 20
I
LUANDA
Foi um regresso à vida esta chegada
Ao porto de Luanda!... Ainda havia
Um róseo balbuciar da madrugada
Na luz e na frescura da baía.
Mas apesar da hora, ainda orvalhada,
Já tudo à nossa volta se movia.
Há no barco uma vida renovada
E, em tudo, mais frescor, mais alegria.
Giram barquinhos na baía quieta,
Os bagageiros são uma mancha preta
Que enche o barco de súbitos contrastes.
E enquanto tudo mexe ao sol e ao vento,
Sinto-me reviver no movimento
Dos negros, das canoas, dos guindastes. !...
Dia 21
SEGUNDO NOTURNO
Ouvindo a água que me embala o sono,
Fui construindo de água o meu castelo,
Castelo singular de um rei sem trono,
Mas rei de um reino estranhamente belo.
Ali hei-de esconder meu abandono
Em líquidos salões tornados gelo,
E o gelo será tal que o sol de Outono
Não logrará fundi-lo ou corrompê-lo
Ali hei-de esconder a minha mágoa
Entre colunas sumptuosas de água,
Que hão-de vencer o tempo, os cataclismos,
Ali hei-de reinar como um tirano,
Ser grande e vil, celestial e humano,
Buscando Deus à tona dos abismos. !...
Dia 22
SCHERZO
Aí vai esta barquinha carregada
De planos de futuro, de esperança,
De sonhos, de ilusões, talvez de nada,
Pois nada é o que jamais se alcança.
Aí vai esta barquinha!... Alvoroçada,
Esta pobre alma humana não descansa!
Se uma quimera vê despedaçada,
Logo atrás de outra, a estremecer, se lança.
No entanto, o mar, que nos conhece bem,
Sorri de tudo isso com desdém
E brinca, enquanto em vagas se arredonda.
“Aí vai esta barquinha”!... E zombeteiro,
Lança-nos de uma para outra onda,
Indiferente, a brincar o dia inteiro. !...
Dia 23
I
MISSA A BORDO
O nosso barco também tem capela
Não muito grande nem de muito estilo,
Mas o que importa, na verdade, é tê-la,
Ter o refúgio de um lugar tranquilo.
Não é grande, talvez não seja bela,
Mas que paz se respira em tudo aquilo!...
A alma sobe e Deus desce até ela,
Vem-lhe falar… E que bem sabe ouvi-lo!...
Todos os dias, sem fazer alarde,
Por duas vezes, de manhã e à tarde,
Um senhor padre ali celebra missa.
Ó mar, socega, vem rezar também!...
Ouve, como eu, a grande voz que vem
Falar de paz, de amor e de justiça!... !...
II
PODER SUPREMO
O espírito de Deus pairou no ar,
O espírito de Deus, omnipotente,
Baixou suave, milagrosamente,
Sobre a perpétua inquietação do mar.
Há pouco ainda, quem pudesse olhar
O largo oceano, rugidor, em frente,
Tê-lo-ia visto, sobranceiramente,
A sua própria força proclamar.
Mas o Divino Espírito baixou,
E toda a terra que o Senhor criou
Agora o louva, glorifica e canta.
Ó ondas, aplacai vosso furor,
Vosso orgulho abatei, que outro valor,
Mais alto que o vosso, se alevanta!... !...
III
JOÃO SEM TERRA
Terra de meus avós e de meus pais,
Cidade em que nasci, ridente céu,
E vós, ó meus amigos tão leais,
Corações que bateis a par do meu,
Oliveiras da serra, alvos casais,
Noites tranquilas de luar sem véu,
Humildes camponeses, onde estais?
Onde ficastes vós? Onde vou eu?!...
Onde vou eu, perdido, a navegar,
Ferido de morte, em busca do lugar
Onde tratar as minhas cicatrizes?!...
Judeu errante que me leste a sina,
Olha o que sou na vida pequenina:
Pobre João sem terra e sem raízes!... !...
Dia 24
I
FLOR EXÓTICA
Essa flor tropical, de tez queimada,
Que seria favor chamar trigueira,
Tem vinte anos, talvez, ou mais um nada,
E viaja sozinha na primeira.
Sua cor, à do ébano chegada,
Lembra terras de manga e de palmeira,
Mas é gentil, esbelta, bem lançada,
E tem um não sei quê de aventureira.
Veste-se bem, tem charme, é sensual,
Há um brilho de luxo oriental
Nas jóias que lhe adornam a figura.
Traz em volta uma corte masculina;
Pérola negra, o seu fulgor fascina!...
Anda Cleópatra em vilegiatura.
II
O PAPÃO
Dobrámos hoje o Cabo das Tormentas,
Esse que o nosso avô Bartolomeu
Também dobrou entre marés violentas,
Com vagas que chegavam quase ao céu.
Dobrámo-lo sem ondas rabugentas
Como aquelas que o nosso avô venceu;
Foram até tranquilas, sonolentas
As horas que o navio então viveu.
E foi pena que o velho Adamastor
Não tivesse exibido o seu furor,
Erguendo contra nós a voz tremenda!
Porque afinal na vida, que é entulho,
O que mais satisfaz o nosso orgulho
É vencer um papão… mesmo de lenda.!...
Dia 25
TRANSPLANTAÇÃO
Eu sou da terra das amendoeiras,
Dos pinheiros cismáticos, sombrios,
Dos choupos, que se alinham em fileiras,
Abrindo alas ao passar dos rios.
Sou da terra do luar, das oliveiras
Que fazem fundo a brancos casarios,
Das vinhas, das latadas, das parreiras,
Dos musgos cetinosos e macios,
Das papoulas, dos cravos encarnados,
Dos manjericos sempre perfumados,
Do alecrim, que tão bom cheiro dá.
Sou da terra da flor do verde pino…
Como ligar agora o meu destino
A uma flor rouxa de jacarandá?!... !...
Dia 26
I
DURBAN
As águas em que avança a nossa quilha
São já do Índico. Deus seja louvado!
Mar do oriente, mar de maravilha,
Por Gamas e Albuquerque navegado.
Em breve deixarei a minha ilha
Flutuante. Ainda bem! Estou cansado!
Vamos chegar não tarda nada. Filha,
Vai ver se temos tudo preparado.~
26 graus de latitude sul,
Mar calmo, vento brando, céu azul,
Vinte milha horárias, terra a oeste…
Ó senhor comandante, por quem é,
Levante a voz, mande pôr tudo a pé…
Que todo o barco se prepare e apreste!...
II
CHEGAR!...
Chegar… Mas chegar onde? A que paragem?
A que porto de abrigo ou de ilusão?...
Que me espera no fim desta viagem?
Que espero eu desta interrogação?...
Chegar!... Ó patrãozinho da estalagem,
Tem lugar para mim? Basta um colchão.
Não me demoro aqui, vou de passagem,
Nem sei bem para onde… sim ou não?...
Sim ou não?... Aí temos o dilema!
Quem encontrou a chave desta algema,
Grilheta que me tolhe mãos e pés?!...
Chegar!... Porquê chegar?!... sou um destroço…
E ainda espero, ainda me alvoroço!...
Ó alma, ó coração, como tu és!... !...
Dia 27
DESEMBARQUE
O navio atracou. Irreverente,
Deita a língua de fora ante a cidade.
A língua é a ponte, necessariamente,
Que outra não tem a esplêndida unidade.
Avançamos por ela lentamente,
Com enervante vagarosidade,
Espreitamos o cais por entre a gente,
Num misto de esperança e ansiedade.
Olha o Francisco Manuel além!...
Olha a Zezé, que já nos viu e vem
A correr para nós, erguendo o braço!...
Vamos depressa ao seu encontro, vamos!...
E é já em terra que nos abraçamos!...
Que fique em paz o grande peixe de aço!...
Lisboa – Lourenço Marques
Junho de 1968
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