Maria Farrar, nascida em abril, sem sinais particulares, menor de idade, orfã, raquítica, ao que parece matou um menino da maneira que se segue, sentindo-se sem culpa. Afirma que grávida de dois meses no porão da casa de uma dona tentou abortar com duas injeções dolorosas, diz ela, mas sem resultado. E bebeu pimenta em pó com álcool, mas o efeito foi apenas de purgante. Mas vós, por favor, não deveis vos indignar. Toda criatura precisa da ajuda dos outros. Seu ventre inchara, agora a olhos vistos e ela própria, criança, ainda crescia. E lhe veio a tal tonteira no mei do ofício das matinas e suou também de angústia aos pés do altar. Mas conservou em segredo o estado em que se achava até que as dores do parto lhe chegaram. Então, tinha acontecido também a ela, assim feiosa, cair em tentação. Mas vós, por favor, não vos indigneis. Toda criatura precisa da ajuda dos outros. Naquele dia, disse, logo pela manhã, ao lavar as escadas sentiu uma pontada como se fossem alfinetadas na barriga. Mas ainda consegue ocultar sua moléstia e o dia inteirinho, estendendo paninhos, Buscava solução. Depois lhe vem à mente que tem que dar à luz e logo sente um aperto no coração. Chegou em casa tarde. Mas vós, por favor, não vos indigneis. Toda criatura precisa da ajuda dos outros. Chamaram-na enquanto ainda dormia. Tinha caído neve e havia que varrê-la, às onze terminou. Um dia bem comprido. Sòmente à noite pode parir em paz. E deu à luz, pelo que disse, a um filho mas ela não era como as outras mães. Mas vós, por favor, não vos indigneis. Toda criatura precisa da ajuda dos outros. Com as últimas forças, ela disse, prosseguindo, dado que no seu quarto o frio era mortal, se arrastou até a privada, e ali, quando não mais se lembra, pariu como pôde quase ao amanhecer. Narra que a esta altura estava transtornadíssima, e meio endurecida e que o garoto, o segurava a custo pois que nevava dentro da latrina. Entre o quarto e a privada o menino prorrompeu em pratos e isso a perturbou de tal maneira, ela disse, que se pôs a socá-lo às cegas, tanto, sem cessar, até o fim da noite. E de manhã o escondeu então no lavatório. Mas vós, por favor, não deveis vos indignar, toda criatura precisa da ajuda dos outros. Maria Farrar, nascida em abril, morta no cárcere de Moissen, menina-mãe condenada, quer mostrar a todos o quanto somos frágeis. Vós que parís em leito confortável e chamais bendido vosso ventre inchado, não deveis execrar os fracos e desamparados. Por obséquio, pois, não vos indigneis.
Toda criatura precisa da ajuda dos outrosquinta-feira, 17 de julho de 2008
domingo, 6 de julho de 2008
O INSUSTENTÀVEL PESO DO DISPARATE
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Escrito por Acácio Gouveia, em 03-07-2008 08:28
" … com uma casa tão cheia de parvoíces, não queria abrir a boca para juntar mais alguma." Graham Joyce – "Os factos da vida"
Leu a carta, manuscrita com letra legível e razoável português, com a bochecha apoiada no punho direito, fechado, e o cotovelo apoiado na secretária. Dirigida ao director do Centro de Saúde, a familiar dum idoso acamado e muito dependente (presumia-se sem favor, que sujeito a demasiado sofrimento) solicitava um médico para este doente que há anos perdera o seu médico de família. Em baixo a anotação manuscrita e "à consideração do Dr.…", assinada pelo director (*). Em jeito de súplica, pensou para si.
Pousou a carta, libertou a mão direita da função de pilar da cabeça e, em pronação, esticou os dedos sobre os vários impressos que jaziam nesse lado da secretária e foi-os espalhando com movimento lento: Lei n.º 49/2007 de 31 de Agosto de 2007- Normas para a detenção, criação e treino de animais perigosos ou potencialmente perigosos. Artigo 3.º, nº2 — Para a obtenção da licença referida no número anterior o detentor tem de ser maior de idade e deve entregar na junta de freguesia respectiva, alínea c) Atestado de capacidade física e psíquica para detenção de cães perigosos ou potencialmente perigosos, em termos a regulamentar pelo Governo (*) – "uma imbecilidade" suspirou. Fincou o cotovelo esquerdo no tampo, apontou o antebraço na vertical, esticou os segundo e terceiros dedos ao longo da face, o polegar em ângulo recto foi-se acomodar sob o queixo e os dois restantes, semi-flectidos, ficaram-se pelo mento. Decreto-Lei nº 542/79 DR Nº 300 I 31-12-1979 Estatuto dos Jardins-de-Infância Art. 22ª, nº4, alínea d) Declaração médica referindo que a criança não sofre de doença infecto-contagiosa e que a criança é ou não portadora de qualquer deficiência (*) – legitimado pela recente contestação da própria Sociedade Portuguesa de Pediatria qualificou-a com severidade: uma idiotice obsoleta. Atestado Médico para as funções de Sapador Florestal nos termos do artigo 2º do D.L. n.º 38/2006, de 20 de Fevereiro, a ser passado pelo médico de família. Obrigatoriamente, depreende-se. Pelo menos houvera o bom senso de incluir alguns parâmetros de avaliação, considerou. E os pré-requisitos para o ensino superior – uma chachada.
A mão mudou de lugar e foi esfregar a testa. Havia mais, muitos mais. Os olhos desviaram-se, como que atraídos pela estante dos livros, onde a lombada mais apelativa se evidenciou: "A Brincadeira" – Milan Kundera. A mão contornou a cabeça de frente para trás, quase despenteando os escassos cabelos e regressou à face para se imobilizar em frente à boca, os dedos todos juntos. Os médicos de família não abundam (virtualmente ninguém o nega), contudo a tutela não tem pejo em multiplicar o trabalho burocrático, misturando documentos de importância indubitável com simples patetices, numa orgia caótica própria dum filme dos irmãos Marx. Depois a sociedade civil secunda, com uma alegria frenética, este delírio do Estado: qualquer bicho careta se arroga o direito de exigir uma declaração médica por dá cá aquela palha. Atestados para taxistas, escuteiros, seguranças, etc., etc. ...
Da aparelhagem de som emergia a voz do coro dos anciãos de Catuli Carmina de Carl Orff: "O res ridícula! Immensa stultitia" (**).
As mãos encontraram-se, as polpas dos dedos tocaram-se e juntaram-se palma com palma, em posição de prece frente ao rosto. Os polegares quedaram-se sob o queixo e os indicadores subiram até ao nariz, cuja ponta elevaram discretamente. Os olhos prenderam-se por instantes na lombada seguinte: "A nave dos loucos" de Katherine Anne Porter. Efectivamente, em tempo de escassez de mão-de-obra, seria de esperar que concentrassem o labor dos médicos em tarefas de alto valor acrescentado (tratar doentes, por exemplo), nunca em procedimentos secundários ou de utilidade nula. Mas a rainha de copas insiste em inventar jogos fúteis.
Meditava sobre os papéis jazentes na secretária quando se apercebeu do paradoxo sinistro. Por um lado pediam-lhe (quase imploravam) que tomasse conta duma doente acamada. Por outro, impunham-lhe a emissão de declarações, a maioria delas idiotas.
Neste SNS, os papeluchos toscos tornaram-se mais importantes que as pessoas sem médico de família.
Ocorreu-lhe "A Náusea" de Sartre. Perderam a noção das prioridades e do decoro, concluiu.
Retirou os óculos com a mão esquerda e depois o antebraço trouxe-a até à secretária onde repousou. O indicador e polegar da direita, em pinça, apertaram levemente os lados do nariz ao nível dos olhos que se fecharam, com vigor, enrodilhando as pálpebras. A Sra. Ministra havia respondido com alguma ambiguidade ao protesto da FNAM sobre as transcrições – verdadeiro acto de racket burocrático. Revelou então o pendor para com o lóbi hospitalocêntrico. Se não, atente-se nesta pérola inserta na Circular Informativa nº 2 da ACSS: "a referência (?) para os centros de saúde deve ter lugar nos casos de haver benefício, em termos de comodidade, para o utente". Comodidade para o doente? Comodidade é evitar-lhe uma ida desnecessária ao centro de saúde apenas para trocar um papel por outro e, claro está, cambiar os pagadores da factura.
Vagueou o olhar até se fincar num artigo de jornal que dava conta da preocupação da Sra. Ministra com a saída de médicos do SNS, mas augurando ao mesmo tempo o seu regresso.
Dos altifalantes, em tom imperativo o coro de Catuli proferia: "Audite ac videte!" (***) e ele matutou, com a liberalidade de linguagem própria de quem guarda os pensamentos adentro dos limites da abóbada craniana: "bem podes esperar sentada! Só se ensandecerem! O SNS faz lembrar um filme de Jean-Luc Godart ou do Fellini. E fitas destas só na tela".
As mãos desistiram das deambulações crânio-faciais e encaminharam-se para os apoios da cadeira, onde se firmaram para o ajudar a levantar. Ainda olhou de soslaio para uma reprodução das "Tentações de Santo Antão" de Bosh, mas resolveu sair do escritório.
Acácio Gouveia
quarta-feira, 2 de julho de 2008
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