De Penacova ao “Portugal Tradicional”
Vítor Andrade, do ICE (Instituto das Comunidades Educativas), fala de Desenvolvimento Local
1 – Penacova: a Escola e o Desenvolvimento Local
O início deste percurso reporta-se à minha entrada no ICE (Instituto das Comunidades Educativas) em 1996 - em Penacova, no projecto Escolas Rurais
Entrei na perspectiva de tentar perceber como as coisas se organizavam à minha volta e nos espaços que ia ocupando – na escola onde desenvolvia o meu trabalho e nas reuniões inter-equipas onde tentava perceber o que era o ICE - foi uma fase de aprendizagem muito intensa, porque estava a viver coisas novas, realidades e perspectivas que me questionavam.
A primeira questão orientadora pode formular-se deste modo:
Pode a Escola educar/desenvolver a comunidade?
Ou, mais específicamente:
–
A ESCOLA, enquanto estrutura exterior – vista como Sistema Educativo/ enformada pelo exterior, isto é, por uma política de educação que é Nacional, não enformada pela comunidade local - pode desenvolver essa comunidade?
É uma questão que não tem uma resposta única, as coisas não são lineares...
O que é, de facto, o “Local” ?
A interpretação do “Local” é uma construção que depende do ponto a partir do qual se age.
Para o Estado, o local é Portugal...
Para a Europa, o local é Europa...
Se nos colocarmos numa perspectiva do Universo, a Terra é um “local” dentro desse Universo. Nesta perspectiva o local é onde agimos e a nossa capacidade de acção está directamente ligada ao lugar que ocupamos.
De facto, a Escola não se pode considerar completamente exterior ao local, à comunidade...no entanto os processos são enformados pelas directivas centrais e não pelas redes de relações e significados locais. O professor que personaliza a escola no local, é organizado por uma estrutura central, não pelas relações locais
A ESCOLA ao tocar as pessoas não é nula, provoca mudança na comunidade em que se insere...mas não se trata de uma dinâmica de desenvolvimento daquele espaço, não se trata de um processo de “Desenvolvimento Local”.
Na minha concepção, o “Desenvolvimento Local” é mais a dinâmica das pessoas, das suas relações dentro do espaço e do modo como essas relações se organizam a partir da forma como interpretam o exterior.
Como é que se pode alterar a situação? Como é que a Escola pode trabalhar o meio, pode não investir na formação do aluno mas mexer com a comunidade? Pode a escola ter, como campo de acção, a própria a aldeia?
Desde cedo percebi que tinha de sair da escola e criar uma rede à sua volta que influenciasse a sua estrutura, o que não é fácil. Os processos de aculturação da relação Escola/Comunidade têm sido no sentido desta preparar os seus membros para actuarem na sociedade em geral e não a pensarem-se e pensar o local onde vivem. É criada a ideia que todos podemos fazer muitas coisas num local que não conhecemos ou simplesmente conhecemos intermediados. Nesta perspectiva o saber está desligado da acção.
Para alterar isto a minha ideia seria fazer algo que não fosse escolar e centrado aí, convidar a escola a participar. Tentar um processo em sentido contrário, da comunidade para a escola. Desenvolver caminhos que conduzissem a Escola a processos de auto-questionamento, de aprendizagem.
O que poderia ser mobilizador de uma identidade local? Memórias, desejos, afectos?
A estratégia encontrada traduziu-se na organização da Feira de Artes e Cultura, onde moleiros, paliteiros e todos os que estão ou estiveram ligados à construção da identidade de Penacova podiam estar e participar com estatuto de igualdade em relação à escola.
A Feira de Artes e Cultura, desenvolveu-se como espaço de mostra e auto reflexão que permitiu à comunidade local reconstituir a sua própria imagem, a forma como se vê... como chegaram ali e como se podiam imaginar a partir dali?
Fez-se a Feira, no princípio virada para dentro. O que é que havia? Houve um esforço de escuta, de interconhecimento. As pessoas falavam da cultura como se já não existisse, como se fosse memórias. O interessante era como dar a essa memória, um novo sentido, um sentido de futuro?
Assim, começámos a convidar pessoas do exterior de forma a quem estava no local se revisse com os olhos de quem vem de fora.
É este, tal como vejo, o fio condutor do Desenvolvimento Local: o que o local pensa do exterior é o que permite organizar o local - sem o exterior, o local organiza-se num relação de fechamento sobre si próprio.
2 - COVAS DO MONTE : A ALDEIA E O DESENVOLVIMENTO LOCAL
Foi já com a bagagem do aprendido em Penacova que “parti” para Covas do Monte, uma aldeia onde já não havia escola.
O início é o mesmo: começando o envolvimento com as pessoas, tentando aproximar-me do local de forma a que as pessoas aí me vissem como um deles - passando muito tempo a ouvir e a falar, não demonstrando ter soluções – se viesse munido com a solução, isso seria criar mais dependências .
Como produzir um processo de auto-organização a partir da cultura local e dar-lhe um sentido? A importância de redes exteriores à aldeia.
O local é constituído por um conjunto de relações interiores e com inter-relações exteriores – neste caso, eu era um “exterior” que através de um processo de aproximação me vou transformando em alguém de pertença.
Temos, por um lado, o imaginário, as vontades, as memórias, os sonhos das pessoas que estão no local... do outro lado, a possibilidade de envolver pessoas exteriores. As pessoas “do exterior” vão entrar no processo como factor de reorganização do Local, na medida em que lhe trazem um novo sentido.
As pessoas não se organizam para nada, organizam-se com um sentido: se começam a chegar pessoas à aldeia, e procuram coisas que a aldeia tem, então vão dando a percepção de novos sentidos à aldeia e para quem a habita. Há uma reorganização do espaço em função, até, de algum retorno económico.
Mas como conseguir estabelecer pontes entre quem “está” e quem “chega”?
A estratégia do “Ouvir” não se fica só pelo ouvir, numa segunda fase passa-se mais para a conversa, introduzindo factores de organização nessa conversa.
Em Covas do Monte, um primeiro momento organizativo deu-se em torno do lagar: eu ouvia histórias do lagar, memórias e gostos... então porque não reconstituir o lagar? Para as pessoas da aldeia, a ideia do Lagar não tinha um valor objectivo, apenas afectivo. Mas quando pessoas de fora chegaram e começaram a ajudar a reconstituir o lagar, elas vieram dar um novo sentido à sua reconstrução – passou a ser uma realidade presente, algo que tinha valor, não era já apenas uma memória do passado transformou-se num valor simbólico da aldeia. Assim, toda a escuta e posterior conversa, foi um processo de eco-organização. Uma reorganização que veio dar novos sentidos às memórias, aos patrimónios culturais, dando-lhe um significado, um valor, um futuro.
Estratégia fundamental: conseguir alimentar redes. Eu não sou apenas o que sou, nem o que sei, sou também um conjunto de relações. Salto de um campo mais institucional, para as redes:
não me envolvo apenas eu , mas tudo o que está ligado a mim, e este é também o meu processo de desenvolvimento.
Compreender isto foi um salto na intervenção: Em Penacova não tinha, ou não tinha consciência, desta rede de conhecimentos, nem redes de organizações que me permitiram, aqui em Covas do Monte, mobilizar públicos...
Nem todos os públicos são mobilizáveis para todas as situações. Eles implicam-se seguindo causas que perseguem. Temos sempre que ter essa percepção e tocar aqueles que nos parecem ser mais favoráveis.
O grupo dos auto-caravanistas é paradigmático – pela simples possibilidade de ficarem na Aldeia mais que um dia, passarem a noite – podem desenvolver contacto muito próximo, relacionamentos íntimos com pessoas do local... amizades, passaram a ter uma importância fundamental no imaginário daquelas pessoas e na sua reorganização do sentido de futuro
O mais complicado não é trazer estes públicos, não é trazer o exterior...o mais complicado é como é que o Local se reorganiza. Não se trata de uma complicação do ponto de vista material, mas sim cultural. Uma reorganização da cultura local pressupõe tempo e processos de liderança. Não há maneira de alterar nada sem alguém que vá reassumindo o processo... há que haver alguém que ponha os outros a fazer e não que faça por eles, que dinamize poderes e não relações de dependência.
O maior obstáculo: se entrarmos em sistemas formais, eles são tão complexos que não é possível a locais de pequena dimensão sobreviver no sistema.
Quer queiramos quer não, os locais já foram tão permeáveis a um padrão globalizante/ especializante, que têm tendência a organizar-se em função de um produto. A ideia que têm é a que para se desenvolverem é conseguir meter no mercado produtos feitos e transformados...
Ora, em espaços de pequena dimensão a especialização é justamente a diversidade...
especialização é morte, nesses espaços. Mas o que está instalado é a cultura dos produtos: querem fazer um produto para vender, mas neste pequenos locais a produção é tão restrita que não é rentável.
O que se tem de meter no mercado é o processo que leva a esse produto – ao adquirir o produto, o público vai adquirir todo um processo cultural e isso tem outro valor: esse processo não existe for do local, para usufruir temos de ir ao Local, o processo é intransmissível. É no processo que está a cultura e a identidade das coisas e isto é o que me leva a ir ao Local e não adquirir numa prateleira de um supermercado.
Em Covas do Monte o processo passou por fazer das colheitas um momento atractivo para a aldeia.
Como é que aquilo que fazem por necessidade, por trabalho, pode ser para outros, para o públicos que vêm do exterior, lazer de tal forma que pagam para participar?
Outra estratégia passou por transformar o trabalho de pastoreio num percurso pedestre... o trabalho do pastor passa a ser uma mais valia em função da captação de públicos.
Voltando a Penacova, dou um exemplo que ilustra bem este conceito. Ao procurar valores para animar a Feira de Artes e Culturas, puseram-me em contacto com uma senhora que faz artesanato de madeira que se usa no fabrico dos palitos: objectos artísticos, facas, moinhos. Esta senhora e a sua filha produzem estes objectos numa garagem, à porta fechada.
Ora, eu sei que o maior valor do artesanato não é a peça, é o processo... estas artesãs estão a roubar o maior valor ao artesanato, ao trabalhar fechadas na garagem... porque o que está aqui é culturalmente o modelo da fábrica: apenas interessa o produto acabado que se coloca no mercado. Fazem peça a peça e só vendem a peça. Porque é que a associação local não passa a ser um espaço onde se faz artesanato, de forma que públicos exteriores possam assistir ao processo de fabrico?
Por uma alteração da organização cultural o acto escondido de fabrico de artesanato passa a ser exposto, tornando-se num recurso de desenvolvimento da aldeia pela sua captação de público. O público tem de aí se deslocar, pois só aí poderá usufruir daquele bem que é o processo. Com pessoas lá podem surgir todo um conjunto de outras actividades económicas.
Isto é valido na aldeia ou no bairro da cidade... se criarem uma estrutura de identidade criam sustentabilidade, se se descaracterizarem e passarem a organizar-se apenas para servir e servirem-se do exterior esvaziam-se. Historicamente sempre assim foi, os pequenos espaços são estruturas de diversidade e de complementariedade.
Covas do Monte já percebeu isto.
O passo seguinte, em Covas do Monte, é deixar que o processo de desenvolvimento se torne autónomo.
Desde o Verão deixei de alimentar o processo: estou a tentar que haja na aldeia alguém que faça a ponte com o exterior. Passo a ir a aldeia, passar-lhe os contactos, quem vai fazer os contactos são as pessoas de lá. O grupo de pessoas de Covas do Monte faz os contactos e eu passo a SURGIR NOS GRUPOS MAS CONVIDADO.
Por esta minha posição, os actores locais, notam uma redução de público e tem-me questionado. Agora a conversa tem decorrido à volta já não da reconstrução da memória e do que fazer na aldeia mas como continuar a atrair pessoas.
Como tem havido uma redução nos subsídios à produção de cabras, nesta altura grande parte do rendimento da aldeia já são os visitantes: o restaurante e o que se vende para o restaurante e nas pessoas que são chamadas para trabalhar em torno do restaurante e da associação.
Os mais idosos já não podem fazer o pastoreio, no entanto ele é mantido pelas pessoas activas.
O que leva estas pessoas a pastorear? Neste momento ainda é o rendimento que retiram dos subsídios, mas com a continuação da tendência de redução desta receita o pastoreio não compensará... apenas passará a compensar como elemento de identidade da aldeia. Se houver uma identidade própria, essa identidade traz o público... se houver público na aldeia há um conjunto de negócios que é possível fazer... desde a compra de refeições até um conjunto de outras novas actividades ligadas ao usufruto do espaço natural.
3 - PORTUGAL TRADICIONAL : A REDE E O DESENVOLVIMENTO LOCAL
É um projecto imaginado a partir desta ideia... a visibilidade que se pode dar a espaços como Covas do Monte, a espaços onde se produz artesanato no fundo fazer da produção o produto turístico... é fazer chegar a informação a públicos que procuram justamente estes espaços. Nesta época tão globalizada os processos locais atraem muito público.
Básicamente, o ”Portugal Tradicional” é um site... onde tem informação de locais, de pequenos projectos, de quintas... transforma o processo de produção num produto turístico. É uma tentativa de tornar visível, o que está oculto: os pequenos locais que doutra forma passam despercebidos.
Está organizado e dirigido a um conjunto de públicos que procura novas formas de fazer turismo e que está por aí a surgir. É a esse público que “Portugal Tradicional” se dirige.
O que me leva a ir às “Capuchinhas de Montemuro” comprar uma capa ou um casaco? Com certeza não terá a ver com a necessidade de me agasalhar do frio. Tem mais a ver com o contacto com as pessoas que o fazem, com a possibilidade de conviver com a cultura. Trago um casaco, mas trago muito mais que um casaco, trago uma cultura comigo.
Por parodoxo que pareça, somos mais solicitados, no “Portugal Tradicional”, por empresas especializadas em turísmo... as associações de desenvolvimento local ainda não viram o interesse desta rede para a sustentabilidade dos seus projectos. Parece que algumas Associações de Desenvolvimento Local têm algum pudor em assumir a dimensão económica, eu não tenho essa visão: a economia faz parte da nossa vida - descurar o factor económico no processo não permite a mudança - o que está no terreno tem de trazer mais valias económicas, ou as pessoas ficam permanentemente dependentes.
Começam a surgir novas oportunidades e novas olhares.
Por exemplo, em VALADARES, uma freguesia de S. Pedro do Sul. O presidente da Junta de Freguesia é técnico de turismo e assistiu ao processo de Covas do Monte e a tudo o que ele envolveu.
Em conjunto com o Centro Social de Valadares começámos a imaginar a constituição de uma cooperativa que organizasse a produção agrícola que ajude a estruturar os produtores e a organizar alguma produção local e que pressupõe a vertente turística na valorização e escoamento desses produtos. Logo que haja o mínimo de organização passa a ser um local do “Portugal Tradicional”
Outro exemplo, o de MACIEIRA DE ALCOBA: aqui o processo está mais adiantado. Existe um restaurante (cujo projecto se desenvolveu com apoio do Município) e algum alojamento de iniciativa privada. Em embrião está a ideia de a Associação Local dinamizar a reconstrução de moinhos de água e a transformação de um lago numa piscina natural.
Outra ideia que aí começa a ganhar consistência é a de conseguir os meios para fazer agricultura em terrenos que se encontram ao abandono. Para isso estão a contactar os seus proprietários no sentido de obter a sua cedência de utilização. Posteriormente os produtos serão de preferência consumidos no restaurante. Há também a ideia de alugar pequenas parcelas a quem pretender produzir alguns dos seus alimentos e fornecer os serviços necessários ao desenvolvimento dessas hortas aos seus locatários.
Como em todos os pequenos espaços a diversidade e a complementariedade são o suporte para a sustentabilidade.
Há sempre dois polos de intervenção: a rede que mobiliza os públicos, e o diálogo com quem está nos locais, ajudando a criar visibilidade, organizando os processos internos para que se transformem em mais valias, criando pontes entre o local e os seus públicos.
4- INTEREQUIPAS: ORGANIZANDO O PENSAMENTO ESTRATÉGICO
Durante todo o processo existiu um espaço fundamental que me permitiu questionar-me perante a diversidade: as reuniões inter-equipas do ICE . O ICE não é uma organização e homogénea é um espaço onde se discutem ideias e se reconstitui a estratégia. Um espaço de diversidade: onde cada um pode sentir “eu sou diferente e ainda bem”.
As reuniões inter-equipas provocam-me a sensação de desconforto/CONFRONTO,
acordo/desacordo.
São enriquecedoras pela diversidade - pelo confronto – cresço eu próprio, desenvolvo a capacidade para argumentar as minhas ideias – e isso pressupõe um crescimento.
São espaços onde se organiza a reflexão sobre a prática, onde se argumenta a partir dela e se enforma a prática.
5 – DESAFIOS: ANTEVENDO FUTUROS
Não é por acaso que o meu símbolo é o moinho...
- é ver crescer um processo
- é ver o processo tornar-se sustentável pelas próprias pessoas
- ver um conjunto de pessoas no local a construir e a reconstruir-se
- é voltar a Covas do Monte como visita e ouvir as pessoas a falar dos seus lagares e dos seus projectos
- é cada vez conhecer mais processos e tentar percebe-los
Por que é que uns processos falharam e outros não?
Qual o ponto de viragem?
Vitor Andrade
Março 2010