sábado, 13 de outubro de 2007

O Elmo de Mambrino

José Ricardo Costa Eu tenho esta fotografia guardada há anos e ainda hoje não consigo deixar de olhar para ela. Não esteja à espera que eu venha aqui com ironias mesquinhas sobre o facto de aquele jovem maoista e revolucionário de ar pensativo, ser hoje um liberal e presidente da Comissão Europeia. Acontece que eu olho, olho, olho e não consigo deixar de olhar. O que é que me fascina nesta fotografia? Não é o prazer de imaginar um Durão Barroso anterior a Durão Barroso, vociferando contra a burguesia em nome da ditadura do proletariado. Muito antes de conhecer Heraclito, vi Rui Jordão a jogar no Sporting e Laranjeira a jogar no Benfica. Aprendi, desde então, que o caminho que se sobe é o mesmo que se desce. O que me fascina é a convicção com que Durão Barroso estará a pensar no que estará a pensar. Poder ver o rosto de alguém que está absolutamente convicto do que está a pensar, sabendo-se que, hoje, está absolutamente convicto de que estava absolutamente enganado no que estava a pensar. É um pouco como ver a imagem de Diana de Gales a sair pela porta giratória do hotel, minutos antes de morrer. Ver o rosto de alguém que sabemos que vai morrer sem saber que vai morrer. Eu acho os mecanismos da convicção, espantosos. Para mim, a obra que melhor fala sobre a convicção chama-se D. Quixote de La Mancha. Foi escrita por Cervantes mas poderia ser escrita, fossem eles romancistas, por Platão, Montaigne, Descartes, Espinosa, Hume ou Nietzsche. Tudo ali cheira a ilusão, a aparência, a falsidade, a mentira. Mas ilusão, aparência, falsidade e mentira, vividas com a maior das convicções. D. Quixote olha para uma taberna e vê um castelo. Olha para uns pobres coitados e pensa que são fidalgos. Olha para um barbeiro com a sua tigela de metal na cabeça e julga tratar-se do mítico elmo de Mambrino. São mil e tal páginas cheias de ilusões. Até aqui nada de anormal. D. Quixote é louco e os loucos são mesmo assim. Só que, ao mesmo tempo, D. Quixote está absolutamente convicto do que vê. E como prova ele tal convicção? Assim: " Tudo o que contei o vi com os meus próprios olhos e o toquei com estas minhas mãos". Ora aqui está! Perguntassem a Durão Barroso, praguejando contra a democracia parlamentar, se estava convicto das suas ideias, que responderia ele? Que eram tão evidentes como se as visse com os seus próprios olhos e as tocasse com as suas próprias mãos. É neste sentido que faz falta o saudável cepticismo dos filósofos. Gente que nem sempre vê o que os outros pensam que vêem, nem toca com as mãos o que outros pensam que tocam. E que vê com os seus olhos o que os outros nem sempre vêem e toca com as mãos o que os outros nem sempre tocam. E não penso apenas nos alucinados Quixotes e Durões Barrosos deste mundo. Há alguém de quem nos esquecemos muito mas cuja "loucura" Cervantes passa o tempo a lembrar: Sancho Pança. D. Quixote é louco com as suas convicções. Mas Sancho Pança está convicto da convicção de D. Quixote. D. Quixote é louco mas Sancho Pança vive na sombra da loucura do amo. D. Quixote, o louco, promete a Sancho torná-lo governador. Sancho vive na esperança de ser tornado governador por D. Quixote. No final da obra, após um longo sono, Quixote acorda curado: "Já não sou D. Quixote de La Mancha, mas Alonso Quixano". E nega convictamente tudo aquilo em que convictamente acreditou. Eu nunca morri por isso não sei bem o que se pensa quando se morre. Mas se calhar é como aconteceu a Quixote. Olha-se para trás e tudo em que acreditámos parece ilusório. E perdemos todas as convicções. Talvez, nesse momento, todos os elmos que vimos ao longo da vida se transformem em simples tigelas de barbeiro. jr_costa@clix.pt

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