domingo, 18 de outubro de 2009

JOÃO DA MALHA (Poema em verso, mais tarde posto em prosa)- por Mário Simões Dias

O sol já se aproxima do poente,
Quando, ronceiro,
Quase aderente ao solo em que caminha,
João da Malha sobe lentamente
Pelo carreiro
Da Pedruguinha.
.
Leva a enxada ao ombro e, de olhar fito
Num ponto vago
Do infinito,
Seus olhos são batel que se perdeu
No grande lago
Azul do céu.
.
Ao chegar à courela,
Para um segundo;
Depois,com modos bruscos,agitados,
Empurrando a cancela,
Entra na leira que há bem poucos dias
Ainda era para ele um mundo
De cuidados,
De alegrias!...
.
Entra de manso,devagar,
Como quem vaifazer uma surpresa,
Ou vai para roubar!...
Friamente,olha em roda:
É ela, a Pedruguinha,
A sua leira,sua riqueza...
É ela toda,Toda inteirinha!...
.
Num arremeço,
Para afastar a sugestão que vem,
Como um torpêço,
Da terra mãe,
João da Malha, brusco,Empurra para fora, com a enxada,
O penedo negrusco
Que lhe veda a entrada.
.
“Quem poria aqui isto “?!...
E, fechando a cancela com barulho,
Parece desejar,
Ante o caso banal, mas imprevisto,
Impedir o pedregulho
De voltar.
.
Lento, começa
A caminhar pela vereda estreita,
Aberta ao longo da propriedade,
E, pesadão,
Grave, sem pressa,
Aqui se curva sobre um talhão,
Além ajeita,
Aqui contempla, mais além espreita
As mil promessas da novidade.
.
O sol ainda brilha, ainda há calor,
E, sob a luz que a banha,
A terra, a dar-se toda ao sol ardente,
Ao escaldante amor
Desse amigo distante,
Sente a volúpia estranha
De quem se entrega voluntáriamente
A dois braços de fogo devorante.
.
Amor fecundo,
Volúpia luminosa, enternecida,
Orgulho de sofrer no mais profundo Do seio materno ...
Contentamento da missão cumprida,
Renovo eterno
Da mesma vida!...
.
João da Malha
Não sabe definir tudo o que sente
E a terra lhe sugere;
Mas qualquer coisa que no ar se espalha
E que da terra vem,
Fá-lo pensar inconscientemente
Numa mulher
Que vai ser mãe.
.
E começa a lidar.
Por entre as couves altas, devagar,
Não vá tocar nalguma,
A enxada vai abrindo
Estreito rêgo, longo e coleante,
Por onde a água há-de saltar, sorrindo,
Levando a cada uma,
Após um dia sofocante,
Um pouco de seu frescor
Reanimador
E fecundante.
.
E João da Malha
Cisma, enquanto trabalha.
Porque não há-de ser assim?... A terra
Leva tudo o que um homem pode dar,
O trabalho, os cuidados, o suor,
E para lhe arrancar
Aquilo que ela encerra,
O vinho,o pão,
Senhor!...
Quanto martírio e quanta ralação!...
.
E depois, melindrosa que ela é!
..
Hoje p.rometedor e
Como um sorriso de criança,
Amanhã, quem a viu e quem a vê!
Porque caíu geada,
Porque o vento soprou, ei-la mudada,
Perdido numa hora,
Um ano de esperança!...
.
É o mildium na uva,
É a moléstia a dar nos batatais...
O bicho que roi tudo e tudo estraga...
A seca... a chuva...
A neve... os vendavais.,
.
Que às vezes também são behttp://www.blogger.com/img/blank.gifm boa praga!...
.
.
Ainda o ano passado,
As oliveiras a vergar ao peso
Do fruto já vingado,
E nisto vem um vento de tal raça,
Um furacão tão tezo,
Que deitou tudo abaixo!... Uma desgraça!...
.
E é isto a vida de quem sacha e cava
E rega e lavra e monda
E revolve hora a hor a terra ingrata!...
Olhos sempre no chão, vontade escrava
Da terra,que não sabe dizer bonda
A quem a amanha e trata.
.
Sempre uma lida insana!
Sempre a espinha dobrada
Sôbre a enxada,
Ou sobre a foice, quando a ceifa aponta!
E sempre a mesma cabana,
Sempre a mesma telha vã,
O mesmo caldo, e sempre incerta a conta
Do que se tem para amanhã!...
.
Os gozos onde estão?...
É só à noite uns dedos de cavaco
À porta da loja
Do Zé do Paleio,
Ou então,
Quando um homem se arroja
A perder um pataco,
Uma bisca lambida ou um sete-e-meio...
.
E daqui não se sai!
É como a roda do rio
Sempre na mesma cantiga.
O filho faz o que fazia o pai,
Sem uma fuga,sem um desvio,
Sem uma queixa pela fadiga.
.
Raio, que vida esta!
Até um homem deixa de ser homem,
Para ser uma besta,
Impassível diante do que sente,
Das mágoas que o consomem
Ininterruptamente!...
.
Solene como um rei, o sol declina,
Mas tão manso, tão sem pressa,
Que a gente imagina,
Ao vê-lo baixar,
Que o sol já começa
A sentir pena de nos deixar.
.
Em baixo, as casas da aldeia
Espalham-se no vale extenso e aberto
Ao ar e ao sol
E, mais além, num zig
-zag incerto,
A estrada nova coleia,
Lembrando gigantesco caracol.
.
Há manchas na paisagem,
Manchas amarelinhas de trigais
Em terras baixas de regadio,
Manchas verdes de folhagem,
O verde claro dos olivais,
O verde escuro dos pinheirais,
Grave e sombrio.
.
E ainda o verde tenro, amarelado,
Das vinhas que, com graça luninosa,
Trepam encosta arriba,
Mostrandoos cachos de ouro ao sol dourado,
Como dozela vaidosa
Que seus enfeites exiba.
.
Pelas altas montanhas,
Onde, por entre pedras calcinadas,
Nem musgo rasteiro espreita
Ou deita
Sua breve penungem,
Por essas terras altas, desoladas,
Há largas manchas castanhas
E velhos tons de ferrugem.
.
Mas a paisagem ri suavemente
E canta sob o sol que tudo alegra
E tudo acaricia.
Só João da Malha,olhando a terra, sente
Que a vida é negra,
Negra e sombria!...
.
............................................................................................
.
Alegre, verdejante, sossegada,
A Pedruguinha,
A meio do outeiro,
Fica em poial risonho alcandorada,
Como avezinha
No seu poleiro.
.
Não é grande, isso sim!...
Mas faz milagres o amor de quem
Trabalha no que é seu,
E assim,
A Pedruguinha amanhada,
Bem sachada,
Bem lavrada
Por quem a vida lhe deu,
Tem os aspecto de alguém
Que quiz pagar com bençãos todo o bem
Que recebeu.
.
Nela, ou por milagre ou por encanto,
O suor fez-se planta, fruto e flor,
A humildade vitória,
A luta canto,
E o gesto rude, para sua glória,
Benção e graça do Senhor.
.
Nela, tudo sorri,
As folhas largas como mãos abertas,
Que do cuval se estendem,
As longas vagem que pendem
Das vara dos feijoeiros,
As bojudas abóboras, que ali
Lembram calvas cabeças descobertas,
E os próprios rubros tomates
São risadas escarlates
Que irrompem dos tomateiros.
.
Ao canto do poial,
Robusta, musculosa, quase atlética,
A despeito de um ar suave de avozinha,
A figueira negral
Empresta certa estética,
Imprime certo tom patriarcal
À Pedruguinha.
.
E gentil, altaneira,
Ao ventozinho leve que começa
A soprar sorrateiro,
Um campinho de milho ondula,ondeia
E agita sorridente uma promessa
Em cada espiga cheia.
.
João da Malha
Conhece há muito tempo esse recanto;
Por lá brincou petiz
E, homem feito, já por lá trabalha
Há muito ano
Num labor insano,
Amanhando,
Sachando,
Semeando,
Levando a cada canto
A vida a uma semente, a uma raiz.
.
De tanto ver no solo projectada
A sombra do seu vulto,
Como figura animada
A repetir-lhe os gestos vigorosos,
Há dentro dele o sentimento oculto,
A secreta noção
De que os traços sinuosos
Da sombra que o retrata, muda e calma,
São, no solo que ele ama, a projecção
Do seu ser, em corpo e alma.
.
Na terra que cultiva,
Algo da sua vida se insinua
E se renova nas espigas cheias,
Alguma coisa bem viva,
Cuja vida já foi sua,
Sangue que já correu nas suas veias.
.
Por isso, limitada a aspiração
Da sua vida ao chão que lhe sorri,
Correm-lhe os dias naturais, felizes,
E sente-se irmão
Das plantas que ali
Colheram raizes.
.
Agora, porém,
Alguma coisa dentro dele existe
Que o faz olhar a terra misteriosa
De diversa maneira,
Alguma coisa o detém,
O traz alheio e triste,
O livra da atracção, tão poderosa,
Com que a terra o prendeu a vida inteira.
.
Constante sobresslato
Faz-lhe da vida frágil batelinho
Em luta no mar alto,
E a estrela cintilante,
Que do norte o guiava no caminho,
Como astro bendito,
Vagueia agora, fugitiva, errante,
Perdida no infinito.
.
Outrora
Seguia confiante a sua estrada,
Única aberta sob um sol de festa;
Agora
Vê-se diante de uma encruzilhada,
Sem decisão para tomar por esta
Ou por aquela estrada.
.
E contudo,
É preciso fixar-se, dar um norte,
À vida que não para,
E não cruzar os braços... sobretudo
Ter coragem, ser forte
E olhar a vida em frente, cara a cara.
.
E João da Malha, João da Malha
Cisma, enquanto trabalha.
.
Após imagem desenterra imagem,
Sucedem-se lembranças
De mil castelos que no ar ergueu;
É toda uma paisagem
Que dentro dele se estende e desenrola,
Num agitar confuso de esperanças,
De saudades da vida que viveu,
Fumo que ao longe se evola.
.
Porém, a sobrepor-se a tudo quanto
Sua lembrança evoca,
A afagar-lhe os desejos, a ambição,
Surge lá lomge, tentadora, envolta
Em misterioso encanto,
A terra da tentação,
A terra ardente, cuja luz sofoca,
Mas cujo seio, a abrir-se em pomos loiros,
É uma torrente à solta,
Um perpétuo jorrar de mil tezoiros!...
.
O Brasil!... O Brasil!...
O mistério, o país maravilhoso
Que as espumas ocultam!...
Como nos longes seus tesoiros mil,
Fazendas, cafèzeiros, sol radioso,
Aos olhos dele avultam!...
.
Muitas vezes ouvira já falar
Nesse caudal gigante que parece
Que no há-de ter fim!...
Mas até lhe custava acreditar
Que no mundo houvesse
Uma terra assim!...
.
Mas era verdade!
Ele bem vira, com seus próprios olhos,
Como o Cristiano do Sobral voltara:
Ar de cidade,
Notas aos molhos,
Um cheiro a rico de virar a cara!
.
Sempre bem posto,
Bem preparado,
Dedos cheios de aneis, Um riso de quem anda bem disposto,
E então tratado
Que nem os reis!...
.
Boa gravata ao pescoço,
Boa bota de verniz,
De polimento ou lá que raio é!...
Enfim, um brasileiro, um ricalhoço,
Que, pelo que se diz,
Nem sabe ao certo quanto tem até!...
.
Já se sabia que ele estava bem.
Ainda antes de vir,
Comprara o terreno da Ínsua da Vasa,
Que o Rasca vendera por não ter vintém!
E agora o Cristiano já dissera
Que ía construir
Uma grande casa,
Como ninguém na aldeia inda tivera!
.
Que tal seria a casa, era de ver!
Alta, caiada,
Varandas corridas,
E lá por dentro salas e mais salas!...
E ele, João da Malha, sem poder
Largar a enxada
Sempre amarrado à mais ruim das vidas,
A sofrer, a roê-las, a amargá-las!...
.
E tudo porquê ?
Porque não fôra, como o Cristiano,
Capaz de arremeçar consigo até
À outra margem do largo oceano.
.
Tudo porque deixara
A rotina lançar-lhe aos pulsos duros
Apertada cadeia
E porque desde então assim ficara,
Preso por ela, dentro dos muros
Da sua aldeia.
.
Forte imbecil!...
Sempre amarrado ao mísero torrão,
Feito escravo de todos!... Que papalvo!...
E o Brasil, o Brasil
Ao alcance da mão,
Que era só resolver-se e estava salvo!...
.
E afinal porque não se resolvia?!...
A todo o tempo é tempo de emendar
Um disparate, um erro!
Deitaria consigo, deitaria!
Era novo, sabia trabalhar,
Tinha uns braços de ferro.
.
Para a passagem, isso é que e
ra pior!...
Mas que diabo,
Não fosse outro o torpeço!...
Não tinha a Pedruguinha o seu valor?...
Vende-la-ia, pois então, e ao cabo,
Compraria mais terras no regresso.
.
Vendê-la-ia, sim,
E o que de lá mandasse em cada carta
Que escrevesse à mulher,
Raios a partissem se, enfim,
Não chegasse à larga,à farta
Para a tropa cá viver!...
.
E João da Malha,
Vendo-se já na terra abençoada
Das riquezas sem conta,
Já consigo sorria:
“Adeus, vida infeliz de quem trabalha!...
Adeus, alvião!... Adeus enxada” !...
A sua decisão estava pronta:
Iria.
.
.......................................................................................
........................................................ .
Cansado de cismar,
Reparando que o sol ía fugindo,
Que se acabava o dia,
João da Malha deixara-se tombar
Sobre uma pedra, a saborear, sorrindo,
A vida que antevia...
.
Em roda,
Uma paz suavíssima,discreta,
Descia sobre a terra toda
E, docemente,
Suavemente,
A tarde,com seus últimos lampejos,
Serena, quieta,
Fôra subindo pela vertente
E agora, presa nos altos cumes
Por fios breves, quase a quebrar,
Procurando outros céus a que se acoite,
A tarde, doce como os perfumes
Que andam no ar,
Mandava à terra seus mil desejos
De boa noite.
.
E a noite pelo vale,
Com levezas carinhosas,
Toda desvelo, quase amternal,
Já começava pousando
Sobre o fundo das quebradas
Seus novelos de sombras silenciosas,
Que apouco e pouco se iam desdobrando,
Desapertando
E avolumando,
Como compridas meadas
Desenroladas.
.
E nesse aproximar de sombra e luz,
Ambas suaves, ambas esbatidas,
Passa uma branda ternura
Que envolve, que alicia, que seduz...
Como se luz e sombra, assim inidas,
Tão serenas e calmas,
Espalhassem mais paz e mais doçura,
Mais quietação sobre as almas.
.
Mansa e mansa,
Como gotinha de água presistente,
Que teima em fazer branda a pedra dura,
Essa paz envolvente,
Respiração da terra que descansa
Em suave torpor,
Entra, penetra, acaricia e espalha,
A pouco e pouco, um singular frescor
Na alma obscura
de João da Malha.
.
E a noite cai.
A luz,cada vez mais esmaecida,
Cada vez mais distante,
É como nota perdida
Que se esvai,
Toda em ecos diluída,
Toda em suspiros de agonizante.
E João da Malha, pleno de esperança,
Sonha, enquanto descansa.
.
Uma voz doce como voz materna,
Baixinha e segredante,
Desprende-se de tudo o que o circunda,
Sombra de voz, macia e terna,
Que vem, sabe-se lá!... da luz... do instante...
Do céu... da terra... do espaço...
Sabe-se lá!... mas que de paz o inunda
E o toma todo, co
mo um longo abraço!...
.
.
A princípio não sabe donde parte
Esse fio de voz;
Parece-lhe que vem de toda a parte
E de parte nenhuma,
Num sussurrar de estranhos fala-sós,
Embuscados, ocultos pela bruma.
.
Depois, pouco a pouco, a voz ressalta
Do silêncio, mais nítida, mais clara,
Mais alta,
Num segredar nenos incerto,
E João da Malha então repara
Que a voz lhe fala ali bem perto:
.
“Ouve, João da Malha, escuta um pouco:
A noite desce por sobre nós;
Que funda mágua a minha!...
Não sabes quem te fala? Pobre louco!...
Já não conheces a minha voz,
A voz da tua amada Pedruguinha!...
.
Há meia hora que chegaste aqui,
E, enquanto trabalhavas,ou fingias
Que trabalhavas, distraído e lento,
Fui procurando decifrar em ti
O enigma que escondias
No fundo do pensamento.
.
E decifrei-o,
Mas como decifrá-lo me custou,
Me encheu de mágua e de receio!
Como cada raiz em mim cravada
Se contraíu de espanto e se quedou
Entristecida, pasmada!...
.
Pois quê, vais-nos deixar?!...
Vais cortar esse laço que nos liga
Há tantos anos?... Senhor!...
Como se pode assim despedaçar
Uma união tão funda e tão antiga,
Sem tremer de pavor?!...
.
Há quantos anos, quantos, aqui vinhas
Todos os dias, sem faltar nenhum,
A rodear-me sempre de cuidados!
E que cuidados tinhas,
Não fosse faltar-me algum,
Nos dias próprios, de antemão marcados!...
.
Eu já sabia:
Se o sol em agosto me abrasava em fogo
E me tomava a sede angustiante,
A tua enxada surgia,
Solícita,abrindo logo
Caminho ao veio de água refrescante.
.
E quando, findo aquele esforço ingente
De produzir mil frutos, me quedava
Exausta, ao cabo da missão cumprida,
A tua mão deligente
Logo vinha e me estrumava,
A dar-me força nova e nova vida.
.
Por isso me entregava toda inteira
A cumprir meu destino, satisfeita
De o ter tão alto e tão nobre,
E sofria, e lutava de maneira
Que no dia festivo da colheita,
Nesse ao menos, tu fosses menos pobre.
.
Com que profundo orgulho,
Com que estremecimentos silenciosos
De um amor ignorado,
Te via, triunfante, ao sol de Julho,
Erguer as mãos e, nelas, gloriosas,
Os frutos que só eu te havia dado!...
.
Era um encantamento,
Uma hora de comoção, Para mim, a da ceifa!... Num momento,
As foices, vibrando,
Cortavam então
Espigas que de há muito, sem cessar,
Eu vinha criando
Só para tas dar!...
.
Nem tu calculas a ternura imensa
Com que eu alimentava, dia a dia,
Cada humilde semente,
Sem aspirar a outra recompensa,
Além da alegria
De te ver contente!...
.
Mas como o tempo foge!...
Como tudo se extingue, se desfaz
Por sob o azul dos céus!...
É breve e fugitivo o dia de hoje!
Como tudo é fugaz,
Neste mundo de Deus!...
.
Tudo afinal acaba! De hoje em diante,
Não mais procurarás tornar a ver-me,
Para que eu te não lembre a minha dor;
Eu ficarei esperando instante a instante,
Passiva e enerme,
O dia em que hei-de ser de outro senhor.
.
Como isto me apavora!...
Como a separação que se aproxima
Me faz estremecer!...
Dentro de mim, cada raiz te chora,
Cada semente obscura se lastima
Da vida que vai ter!...”
.
Cala-se a voz da terra angustiada.
Em volta, a noite, abrindo longamente
Suas asas de sombra,
Ficara absorta, parada,
Suspensa dessa voz que, pungente,
Até a própria escuridão assombra.
.
Atentas sentinelas
Espalhadas nos céus silenciosos
Como dourada poalha,
As primeiras estrelas
Parecem olhos a espreitar, ansiosos,
O pobre João da Malha.
.
E João da Malha sente aquele olhar,
Sente que tudo em roda
Espera seja o que for,
E parece esmagá-lo esse esperar
Da terra toda
Em redor!...
.
Sùbitamente,
O atavismo de trinta gerações,
Que da terra viverm dia a dia,
Acorda nele o grande amor latente
Que, como brasa a arder sob tições,
Dentro dele existia.
.
“Tens razão, Pedruginha!
Como pude eu alimentar a ideia
De um dia te deixar?!...
A tua vida está ligada à minha;
Somos dois elos de uma cadeia,
Não nos podemos separar”!...
.
E enquanto os astros sobem no horizonte,
João da Malha,
O heroi obscuro, o eterno lidador,
Põe-se a caminho, levantando a fronte,
Como no fim de uma batalha
Um rei que fica vencedor.
.
.
Coimbra, 31-12-1940

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

WORKSHOP Associativismo, Participação, Democracia e Sustentabilidade

Data: 23 de Novembro de 2009
Local: Parque Alta Vila (Águeda)
Dinamizador: Dr. Rui D’Espiney (ICE)
Entidade promotora: Centro Social Infantil de Aguada de Baixo e Instituto das Comunidades Educativas (ICE)
PARTICIPAÇÃO GRATUITA
O porquê desta iniciativa:
A maioria esmagadora das associações confrontam-se com uma precariedade permanente, com a dificuldade de conseguir assegurar a sua sustentabilidade. Com esta questão surge o conceito de democracia participativa.
A Constituição da República Portuguesa contempla quase de igual modo a Democracia Representativa e a Democracia Participativa, havendo, no entanto um tratamento bem distinto. Enquanto que na primeira são concedidas todas as condições de sustentabilidade suportadas pelo orçamento de Estado, na segunda nenhum meio material é suportado. No entanto, ambas são estruturantes do funcionamento da nossa sociedade.
Promover a Democracia passa por viabilizar as condições do exercício da Democracia Participativa, isto é, passa por proporcionar a sustentabilidade material das iniciativas e estruturas que promovem a participação, de entre as quais se destacam as Associações. Mas, longe de serem encaradas como focos de promoção e produção de participação, as Associações são tratadas enquanto meras empresas prestadoras de serviços: apenas pelo que fazem e não pelo que são.
É tendo por propósito contribuir para que as associações se conscientizem quanto ao seu papel na promoção e produção de cidadania e na construção de uma sociedade democrática e solidária que surge esta iniciativa.
OBJECTIVOS Promover a reflexão conjunta sobre princípios-chave para o exercício da cidadania;
Promover a reflexão sobre a requalificação da Democracia Representativa;
Criar movimento social no sentido da conscientização;
Promover a defesa da sustentabilidade económica do associativismo, enquanto condição necessária ao funcionamento da democracia como um todo;
Implicar as associações nos domínios de acção;
Promover o associativismo como espaço de cidadania e forma organizada da democracia participativa;
PROGRAMA Período da manhã (10h – 13h) O que se entende por democracia participativa?
O que faz dela um projecto e uma prática política reivindicativa?
Pausa para almoço (13h – 14h30) Período da tarde (14h30 – 17h30) O que é o Associativismo Cidadão?
Quando é que este é uma componente da democracia participativa?
Como podem as associações aprofundar o exercício da cidadania?
Plenário FICHA DE INSCRIÇÃO (Participação gratuita) Nome: _________________________________ ________________________________________ Profissão: ______________________________ ________________________________________ Instituição/ Serviço:____________________ ________________________________________ Telefone: ______________________________ Telemóvel: _____________________________ E-mail: ________________________________ ________________________________________ Enviar para: Centro Social Infantil de Aguada de Baixo Av. José Augusto Rodrigues Seabra 3750 – 031 Aguada de Baixo Tel: 234 666 590 Fax: 234 667 009 E-mail: censi@portugalmail.pt
NOTA: A inscrição poderá ser efectuada por correio, e-mail, telefone ou fax, desde que contenha os dados acima solicitados.

Rui D’Espiney no Barreiro - Falou sobre a possibilidade de exercer cidadania nas escolas

O exercício da cidadania é a capacidade de questionar, resolver problemas e impor alternativas, segundo Rui D’Espiney. “Resistência pró-activa é a verdadeira cidadania”, referiu o orador, salientando a importância dos “actores” das escolas terem a capacidade para produzir as soluções que melhor se adequam.

HEROI OBSCURO - por Mário Simões Dias

Humilde lidador do chão daninho
Que vais, sol a sol, enchada erguida,
Rasgar a terra, como a abrir caminho,
Como a levar a terra de vencida!...
.
Em teu lidar constante eu advinho
A força antiga,que julguei perdida,
O esforço criador do pão,do vinho,
Da alegria afinal da própria vida
.
Humilde lidador, neto distante
Desse outro herói, que, a golpes de montante,
Fêz a nossa terra deste canto em flor!...
.
Também tu, sob os sol, a tez queimada,
Ganhas, a golpes da robusta enxada,
O nome heroico de conquistador
.
M.Simões Dias

domingo, 11 de outubro de 2009

Mário Simões Dias - No Diário de Notícias 5-2-1930

Do Diário de Notícias 5-2-1930:
É amanhã que se realiza no salão do conservatório o anunciado recital de Mário Simões Dias, que, como os precedentes, tem interessado vivamente o nosso meio artístico musical, sempre ávido de aplaudir aquele insigne artista e delhe testemunhar a admiração que lhe consagra.
Simões Dias é um temperamento de eleição, um «virtuose» que arrebata e apaixona e cuja legião de admiradores é imensa e vai-se avolumando dia a dia num crescendo constante, à medida que à sua gloriosa carreira se vão cimentando novas páginas de triunfos. Achamos interessante, a propósito deste recital, fornecer aos nossos leitores alguns dados biográficos de Mário Simões Dias.
Nasceu em Coimbra a 2 de Junho de 1903, vindo aos 6 anos para Lisboa, onde seus pais fixaram residência, tendo-se manifestado algum tempo depois os primeiros sintomas do mal que aos 10 anos lhe roubou a vista.
Desde muito criança se notava em Mário Simões Dias grandes aptidões musicais, que com o tempo se foram evidenciando e afirmando duma forma indiscutível, a ponto das provas espontâneas do seu temperamento artístico levarem os pais, por conselho de Cecil Mackee, então empresário do sr Carlos, a confiar a educação do novel talento ao grande mestre F. Benetó.
Benetó viu sempre em Simões Dias um dos seus melhores discípulos, e do convívio destes dois espíritos privilegiados nasceu uma amizade que ainda hoje subsiste.
A 8 de Junho de 1925 realizou o seu primeiro recital em Lisboa, no salão da Liga Naval, com um programa do qual fazia parte o celebre concerto op 61 de Beethoven.
Em Fevereiro de 1926 executou, no Teatro do Gimnasio, com a orquestra de Fernandes Fão, o concerto de Max Bruck.
No dia 2 de Maio do mesmo ano apresentou-se ao público do Porto, no salão nobre do Centro Comercial, sendo entusiásticamente aplaudido.
Todos estes concertos valeram a Simões Dias referências elogiosas em toda a imprensa de Lisboa e do Porto.
Animado por estes triunfos consecutivos e aspirando à perfeição da sua arte, quis ouvir e receber conselhos dos grandes mestres estrangeiros.
Em 1926 fixou residência em Paris, donde há poucos meses regressou.
Durante estes três anos ouviu os ensinamentos do grande mestre Lucien Capet, com que privou largamente e cuja morte inesperada profundamente o impressionou.
Embora fosse Capet o seu mestre preferido, doutros ouviu ainda os preciosos ensinamentos. Mário Simões Dias várias vezes se apresentou ao público francês, que muito o apreciava, dando recitais não só em Paris como também fazendo-se ouvir com grande sucesso e inúmeros aplausos em Biarritz e St Jean de Luz.
Em Paris, além de ter tomado parte nas «matinées» de Henri Pruniéres, director de «la Revue Musical», de ser ouvido no Grande Hotel Continental em colaboração com o eminente pianista Marcel Ciampi, etc, Mário Simões Dias realizou o seu último recital em Abril de 1929 na sala «Chopin» da Casa Pleyel, que mereceu de exigentes críticos parisienses, como Marcel Beruhein, Genis Mussy , Pierre Wolf e outros, justas e lisongeiras apreciações. No verão de 1929 regressou a Portugal, fixando residência em Coimbra, onde fundou com seu pai e o Dr Câmara Leite a Academia de Música de Coimbra, Instituto Particular a que o Governo concedeu a vantagem de nele serem feitos os exames do Conservatório.
Sem deixar a sua vida de concertista, Mário Simões Dias trabalha afincadamente no engrandecimento da sua Academia, que tem para Coimbra um extraordinário valor.
Sacrificou à música toda a sua vida, mesmo a sua vocação para as letras, revelada auspiciosamente num livro de versos denominado «Outonos» , publicado em 1921, a que se seguiu um poemeto, «Puríssima», obras estas em que largamente foi demonstrada a sua sensibilidade de artista e que mereceram elogios de toda a crítica.
É, pois, um verdadeiro artista em toda a acepção da palavra,Mário Simões Dias, a quem o nosso público irá dispensar, mais uma vez, a sua carinhosa admiração.
Já poucos bilhetes restam para este recital, atendendo ao valor de Mário Simões Dias, podendo-se obter os poucos que restam no salão Neuparth, da rua nova do Almada; Casa Sassetti, ,, da rua do Carmo, e joalharia do Xavier de Carvalho, da rua Áurea.

Dar corpo a um Movimento Social em torno do Associativismo e da Democracia Participativa - Rui D'Espiney

1.A Constituição da Republica Portuguesa contempla, quase diríamos com igual dignidade, a Democracia Representativa e a Democracia Participativa. Dela ressalta com clareza que uma e outra são estruturantes do funcionamento da nossa sociedade.
O Tratamento que lhe é dado, na prática, a cada uma destas formas de democracia é, no entanto, bem distinto:
- À Democracia Representativa são concedidas todas as condições de sustentabilidade suportadas que são, pelo orçamento de Estado, as várias despesas com o seu funcionamento (inclusive as efectuadas em ordem à competição entre concorrentes).
- À Democracia Participativa nenhum meio material é facultado. O Estado não contribui com um cêntimo para a sua viabilização.
Dito de outra forma garante-se a Representação mas não se investe na Participação e porque a Democracia Plena só existe quando uma e outra funcionam pode, de facto, dizer-se que a nossa Democracia está coxa.
2. Promover a Democracia passa, na verdade, por viabilizar as condições de exercício da Democracia Participativa, isto é, passa por proporcionar a sustentabilidade material das iniciativas e estruturas que promovem a participação de entre as quais se destacam as formas organizadas de DP que são as Associações. Não é, no entanto, isso que acontece: longe de serem encaradas como focos de promoção e produção de participação as Associações são tratadas enquanto meras empresas prestadoras de Serviços: apenas pelo que fazem e não pelo que são.
Em boa verdade acabam por ser tratadas pior que as empresas pois, ao contrário do que sucede com estas, o valor dos bens produzidas pelas associações não incorpora as despesas de funcionamento nem tão pouco, com frequência, de trabalho (o calculo do valor da hora do mecânico que nos arranja o automóvel inclui as amortizações e as despesas de logística da oficina; o funcionamento dos projectos desenvolvidos pelas associações não só não as inclui, na maioria das vezes, como exige, quase sempre, uma comparticipação nos gastos).
3. É tendo por propósito possibilitar que a Democracia Participativa se afirme como dimensão estruturante da vivência politica económica da nossa sociedade …
É tendo por propósito impor que o associativismo seja tratado e encarado como forma organizada (promotora e produtora) de Democracia Participativa…
É, enfim, tendo por propósito contribuir para que as associações se conscientizem quanto ao seu papel na promoção e produção de cidadania e na construção de uma sociedade democrática e solidária,
……. que nos parece fazer todo o sentido dar vida a um movimento social que chame a si:
- A clarificação e promoção dos princípios que o devem enformar e informar e que se podem traduzir em algumas palavras chave como: autonomia, participação sociabilidades, solidariedade, rebeldia e politicidade;
- A requalificação da Democracia Representativa que, nascida de movimentos sociais tende hoje a dissociar o politico do social, a incompatibilizar o nacional com o local e a contrapor representação e participação;
- A assumpção do carácter de alternativa social, cultural e económica que caracteriza grande parte das associações e iniciativas congéneres,
- A defesa da sustentabilidade económica do associativismo, enquanto condição necessária ao funcionamento da democracia como um todo.
A realização de um congresso programático do Associativismo e da Democracia Participativa coroará o desenvolvimento deste movimento, se funcionar como espaço de interpelação, de questionamento do poder politico, de auto-questionamento dos comportamentos e de revindicação.
4. Naturalmente, quer-se que este movimento não pense apenas para fora mas também para dentro. Um conjunto de questões endógenas a ele terão de ser, com efeito e necessariamente, objecto de reflexão no congresso e no próprio processo da preparação. Por exemplo:
- O que se entende ao certo por democracia participativa? O que faz dela um projecto e uma prática política e reivindicativa?
- O que é o Associativismo Cidadão? Quando é que este é ou não é componente da democracia participativa (isto, tendo-se presente que grande número de associações tende a mover-se por uma lógica empresarial e que há associações actuando em diferentes domínios que podem, ou não, ser pertinentes para a Democracia Participativa)?
- Como podem as associações aprofundar o exercício da cidadania? Como ultrapassar fenómenos de caciquismo e burocratização?
5. Mas se estas são questões, digamos comportamentais, que importa definir, espera-se que naturalmente do movimento nasçam ideias sobre os aspectos do relacionamento do associativismo com o Estado e a DR, tais como:
- A forma justa de ressarcimento pelos bens de interesse publico que produzem;
- As diferenças que apresentam face ao mundo das empresas e as implicações que daí resultam em termos de financiamento e fiscalidade;
- O lugar que devem ocupar (e não apenas as associações mas também as populações) nas audições politicas, nas concertações sociais e nas políticas orçamentais.
6. O lançamento deste movimento, que agora se inicia, fez-se numa reunião para a qual foi convidada cerca de uma dezena de associações escolhidas por meras razões de proximidade e conhecimento mútuo e tendo por leitmotiv imediato a situação de precariedade em que grande parte delas vive.
O objectivo desta reunião vai, no entanto, muito para além do seu âmbito e das intenções que a motivaram.
Em primeiro lugar, quer-se que ela seja o despoletar de um Movimento amplo e abrangente, procurando-se, nomeadamente, implicar, na promoção, mais regiões e domínios de acção. Nesse sentido as Associações, presentes na reunião havida, são chamadas a animar encontros a nível local/regional em que se impliquem todos os possíveis potenciais interessados.
Em Segundo lugar, quer-se que o movimento funcione como um processo de consciencialização, de definição de linhas de acção e de princípios orientadores: o Congresso deverá surgir como a consagração de uma caminhada.
Em terceiro lugar, quer-se assegurar que o Movimento e as suas propostas ganhem visibilidade, o que passa por um forte investimento na divulgação das suas propostas e dos seus sucessos através, nomeadamente, de um Blog.
7. A utilidade de fixar metas aponta para a necessidade de desde já se agendar a data da realização do Congresso do Associativismo e da Democracia Participativa, sugerindo-se, para tal, a primeira quinzena de Novembro 2010. Deverá ter lugar em Tondela.
A próxima reunião promotora será no ISCTE no dia 21 de Novembro de 2009, a partir das 14h30, reunião onde se deverá contar com mais participantes: In Loco Associação de Chãos, UMAR, …
Até lá, espera-se, serão realizadas as varias reuniões das locais/regionais previstas: em Viseu, promovida pela ACERT, a ADRL e o Olho Vivo; em Gouveia, organizada pelo GAF; no Minho sob a responsabilidade da ADRL e da AJD; em Lisboa/Setúbal, dinamizada pelo ICE; no Porto da Iniciativa da Gesto e em Évora a partir da Pé de Chumbo.
Aguardam-se propostas de associações que assumam a dinamização de reuniões em Trás-os-Montes, no Algarve e no Nordeste Alentejano.
Pode ser um impulso a este processo a oficina que se realizará em Águeda no dia 23 de Novembro e que, prevê-se, se abrirá à participação de associações da Região Centro.
Rui D'Espiney

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