quinta-feira, 15 de março de 2007

O Novo Centro de Saúde X Comunidade[1] :Que Relacionamento? É um exercício relaxante pensar e descrever como será , no «Novo Centro de Saúde», este ou aquele aspecto do seu funcionamento, ou aqueloutra particularidade da sua estrutura ou organigrama. Ainda não contaminado pelas pequeninas quezílias e mesquinhices do quotidiano, o «Novo Centro de Saúde» é, essencialmente, o Centro de Saúde do nosso desejo.
(Eles não sabem que o sonho é vinho, é espuma, é fermento, bichinho álacre e sedento, de focinho pontiagudo, que fossa através de tudo num perpétuo movimento.)
Impõe-se no entanto construir a partir de uma base, e mesmo de um alicerce; o próprio sonho se constrói a partir das vivências reais, assim como o futuro de baseia no presente e se alicerça no passado. É do actual e do passado Centro de Saúde que vai nascer o novo, por isso importa perceber o que temos para imaginar o que podemos ter.
Como é hoje a relação do Centro de Saúde com a comunidade envolvente? Necessariamente, é a relação da parte com o todo, envolvido e envolvente: instalado num entre muitos prédios da cidade ou vila ou estendendo os braços até às aldeias afastadas , abandonadas já pelo padre e pela escola; e daí estendendo ainda os dedinhos móveis até aos recônditos do Portugal profundo, através da visita domiciliária. Ele próprio, Centro de Saúde, é animado por pessoas que emanam da própria comunidade envolvente : deixam o filho na escola local antes de vestir a bata, e provavelmente depois de a despir passam na casa da mãe a beber os últimos comentários e mexericos da vizinhança. Dias após dia, hora após hora, milhares de cidadãos de todos os escalões etários carregam dores e segredos que depositam nos ouvidos experientes do centro de saúde, na esperança de se livrarem dessas dores e segredos; em troca ouvem complicadas teorias e discursos só parcialmente compreensíveis, e uma receita de comprimidos mágicos para curar a doença. Entendimentos e desentendimentos, amores e ódios, cumplicidades e conflitos. E ainda uma rede complexa de relacionamentos com outros serviços, em inúmeras comissões, parcerias e projectos cuja eficácia passa muito mais pelo voluntariado e empenhamento, pela cidadania das pessoas envolvidas, do que pelo mandato superior que as organizou. È uma relação íntima, humana, próxima, profunda.
E agora? Que nos pode trazer de novo o ventre promissor do nosso Centro de Saúde Desejado? Que é que nos falta?
Parece-me ser óbvio que falta ESTRATÉGIA. Pensamento estratégico, que possa processar esta informação que entra, ou que se gera no próprio interior da instituição, geri-la e incorporá-la em projecto. Não um projecto predefinido ao pormenor, tal como o poderia conceber um engenheiro, ele próprio externo ao projecto, mas um projecto dinâmico, interactivo, dialogante com o contexto, capaz de processar e incluir contributos e redefinir percursos. Concretizando, o Novo Centro de Saúde organizado em pequenas unidades operativas que se auto- organizam em torno de um projecto contem a possibilidade/esperança de permitir a organização de «comunidades de práticas», organizações aprendentes . [2] É esta a verdadeira promessa de transformação: a presença de comunidades estratégicas permite que o no novo Centro de Saúde seja dotado de consciência e inteligência, relacionando-se de uma forma totalmente nova consigo mesmo e com os seus destinatários e parceiros.
Mas este é o Centro de Saúde do sonho… o problema é que o «desconhecido» pode arrastar atrás de si, não os Centro de Saúde dos nossos sonhos, mas o Centro de Saúde dos nossos pesadelos… e aí desfila a Procissão dos Medos. Estará em curso a pulverização dos Cuidados de Saúde Primários? Corremos o risco de desenvolver uma «Saúde a duas velocidades» podendo deixar de fora sectores da população mais frágeis? (Por exemplo: marginais, imigrantes, etc)A rede de indicadores a contratualizar será paralisante? Estas pequenas unidades operativas estarão menos defendidas de uma eventual tentativa de privatizar o Serviço Nacional de Saúde? Poderá o SNS ser controlado por interesses que nada tenham a ver com a saúde da comunidade?
Quanto a mim, os medos nunca deverão ser negligenciados . Será avisado transportar connosco, no processo de mudança , a malinha dos diabretes: mais capacitados estaremos para os exorcizar se os conhecermos profundamente.
E esta precaução é válida para cada um de nós, gente do terreno, obreiros e objectos da mudança. Porque o desafio passa pela nossa própria capacidade de nos deixarmos transformar mobilizando em nós a pessoa, o profissional e o cidadão. Nunca deixando de ser cidadãos num processo em que a cidadania é fundamental para a libertação. Nunca deixar de ser pessoas, num processo em que é essencial sermos nós próprios, coerentes e presentes, em permanente diálogo com o Outro. E profissionais, profissionalmente estrategas, na busca de soluções para os problemas.
Neste difícil e arriscado processo de construção do futuro será necessário jogar todos os trunfos. Parece-me a mim que o maior trunfo está contido no próprio futuro: porque logicamente o Centro de Saúde de Futuro destina-se a relacionar-se com a Comunidade do Futuro. Quer isto dizer que não são apenas os serviços que estão em mudança: pescando bocadinhos de futuro podemos já sentir grupos de cidadãos mais esclarecidos, organizando-se em embriões de movimentos de cidadania. É daqui que deve surgir a pressão para uma verdadeira transformação nos serviços, dialogantes e voltados para uma comunidade que exige dialogar e participar. Um serviço de saúde que não é só para a comunidade: emerge da própria comunidade e é apropriado por esta.
Calo-me aqui e deixo aos poetas a missão de anunciar o futuro. Deixo-vos com António Cardoso Ferreira:
Dizemos então Pessoa, cidadão, comunidade
Saúde, educação, ecologia
Liberdade, paz, desenvolvimento
Consciência, afecto, interacção
Alegria e bem-estar e mais-ser
Depois fazemos tranças com estas palavras
E elas dançam por dentro dos nossos corpos
Palavras geradoras de mudança
Pontas de dedos tacteando
A fresta de sol que surge
Quando a esperança se entorna pelo mundo
Como se fosse uma janela
Que começa a abrir-se devagar.
(in: http://www.direitodeaprender.com.pt/revista04_01.htm ) [1] Uso aqui o termo «comunidade» para falar de pessoas que habitam o território específico onde o Centro de Saúde está mergulhado, independentemente de qualquer outra característica ou património «comum» que possa unir estes habitantes . [2]« No contexto dos Cuidados de Saúde Primários propomos uma definição mais ampla e socialmente utilitária das Comunidades de Práticas (COPs); assim, consideramos as COPs verdadeiros «Espaços Humanos» criadores de profissionais experientes e críticos, logo cidadãos, que narram e dão sentido ao Conhecimento, à Aprendizagem e às Competências, e que visam a construção de soluções e a geração de valor, traduzíveis em cuidados de saúde, para as populações que servem. As dinâmicas de funcionamento de uma COP podem ser caracterizadas sinteticamente do seguinte modo: 1. Prática de negociação, de reflexão, de aprendizagem partilhada, 2. Identidade pessoal enriquecida (estímulo permanente à construção do self)4, 3. Pertença a uma equipa, cuja cultura é também construída pelo indivíduo, que procura soluções comuns, de forma coesa e convergente.» (HORÁCIO COVITA «O papel das comunidades de práticas na prestação de cuidados de aúde primários» http://www.apmcg.pt/document/71479/878521.pdf

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