sábado, 8 de março de 2008

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Marcha gigante vê na escola o "último reduto da liberdade"
09.03.2008, Paulo Moura
Vieram de todo o país e de todas as gerações. Foi a maior manifestação de sempre de professores: 100 mil, segundo a organização e a Polícia
O Marquês de Pombal é uma estrela a crescer. As avenidas afluentes despejam caudais de professores, da Grande Lisboa, da Região Centro, do Norte, do Sul. Às golfadas, como se uns grupos fossem empurrando os outros pela avenida abaixo. Antes de começar a marcha, "vamos fazer cinco minutos de silêncio", dizem ao megafone. Nem todos obedecem logo e a voz do megafone faz "Chiiiu!" Conta os cinco minutos e recomeça: "Agora todos a gritar: Ministra para a rua/Está na hora /Está na hora/De a ministra ir embora!" Poucos respondem. Avançam para a praça, posicionam-se em frente à Avenida da Liberdade, mas parece que não sabem manifestar-se. Não estão habituados, não conhecem as regras, as técnicas, os rituais. "A luta continua! Ministra para a rua!", tenta o do megafone. Sem muito êxito. Há quem balbucie, há quem olhe em redor, há quem, claramente, não consiga dizer aquilo. O do megafone: "Nem hienas nem chacais, gente assim já é demais!" Pior. Os professores marcham mas não gritam. O motor não arranca. "Emprego, sim. Desemprego, não." Um grupo canta: "Ai ai ai ai, não gosto desta mulher, quero vê-la longe de mim, não façam o que ela quer." Agora sim. A festa começa. "Estamos a chegar ao Rossio e ainda vem gente no Marquês", gritam ao megafone. Palmas. A avenida está cheia. A indignação deles Dulce Abreu, 49 anos, educadora de infância em Aveiro, vai a tocar tambor, vestida de toupeira "como na canção do Zeca Afonso". "Esta é a maior ofensiva de todos os tempos contra a escola pública", diz ela. "Há uma postura de autoritarismo, um atentado à democracia. É uma viragem sem precedentes." Os seus colegas levam uma faixa: "ASAE encerra Ministério da Educação. Motivos: contaminação mortal da escola pública. Ameaça à saúde mental dos professores..." As avalanches do Porto entram na avenida. E os de Braga. Gritam: "Viemos do Norte para ditar a tua sorte." Outros seguram um cartaz: "48 anos de fascismo, 80 de lutas sindicais, aturar esta ministra, arre que é demais." Gracinda Castanheira, professora de Português há 34 anos, da EB 2/3 de Nogueira, Braga: "Está em causa o paradigma da educação. Os parâmetros para a avaliação não podem ser só números, estatísticas." Outra professora de Braga, que guarda o anonimato: "Cada vez mais, sinto que estou a trabalhar para o analfabetismo." Sílvia Lopes, 35 anos, e Olívia Benencase, 28, nunca tinham vindo a uma manifestação. "Temos esperança de que isto provoque algum impacto na opinião pública. E, em consequência, na ministra." Isabel Gomes, 53 anos, professora de Português em Tandim: "Senti necessidade de manifestar a minha indignação. Mas não acredito que isto tenha consequências. A ministra é irredutível." A professora anónima de Braga volta à carga: "Nós não aguentamos a situação!" Começa a exaltar-se: "Eu não aguento mais!" A causa deles O megafone: "É hora! É hora! De a ministra ir embora!" Um dos animadores está exausto. A sua voz já rouca no microfone, depois de muitas e veementes palavras de ordem: "Colegas, também para descansar um bocadinho, mas para mostrar a nossa indignação, um minuto de profundo silêncio." Ninguém obedece. Hoje é o dia de os professores se portarem mal. "É má! É má! É má e continua! A malta cá do Norte quer a ministra na rua!" Anabela e André vêm do Algarve. Têm 37 e 32 anos, são professores de Português e de Educação Física em São Brás de Alportel e Faro. "A democracia nas escolas acabou", diz Anabela Conceição. André Ramos admite: "Já pensámos mudar de profissão." Mas Anabela diz a verdade: "Não o fazemos porque isto é a nossa causa." André explica: "Nos últimos dois anos, só se faz trabalho burocrático." Anabela quer falar do que sente: "Isto é o que nos resta do 25 de Abril." Quando entrou para a faculdade, não sabia que profissão viria a ter. Mas as opções não era muitas. O seu percurso acabou por ser igual ao de tantos outros. Ser professor é quase um destino natural: fazer um curso superior, entrar no ensino. É um projecto, um estilo de vida. Um projecto de sucesso, porque também é um ideal. O que eles são Anabela e André são ambos professores há 10 anos, ganham 1250 euros cada um. Vieram os três do Algarve pela mesma razão que despertou os colegas de todo o país: "Os professores movem-se por causas." Os três, porque Anabela está grávida. Conhecêmo-los. Ninguém pode dizer que nunca se cruzou com um professor. Os habituées das esplanadas do Rossio olham-nos com alguma complacência. Não são metalúrgicos, não são mineiros, nem camponeses. Não são os explorados, os oprimidos: são os professores. Não mudaram muito desde o tempo em que foram os nossos professores. São reconhecíveis por todos, porque vêm de todo o país e vêm em três gerações: a de jeans e blusão, a de pulôver com camisa por baixo, a de barbas, casaco pingão e cachimbo. Não diferem muito dos clichés que temos deles e por isso simbolizam a educação que tivemos - ou não tivemos. Simbolizam o que somos. Todos os professores falam da avaliação, que não se pode fazer desta maneira, "porque as escolas não são empresas". Falam da "burocracia", da linguagem "simplista, dos números, das estatísticas". Dizem que "assim não se pode ensinar". Riem-se dos "tecnocratas da educação". Declaram, como se fosse uma evidência: "Uma escola não é uma empresa." E: "O ensino não é um produto. Os seres humanos não são produtos." Como se o país já fosse uma empresa e nós já fôssemos produtos, por fora. Mas, por dentro, humanos e livres. E os professores fossem a vanguarda dessa liberdade interior. Os habitués do Nicola olham-nos com alguma estranheza. Algum temor. Isto não é uma manifestação de operários, mas, se na sociedade moderna o conhecimento é o novo capital, estes são o novo operariado. O proletariado do espírito. No Terreiro do Paço, Mário Nogueira, da Fenprof, anuncia uma semana de luto e novas manifestações até que a ministra recue. Outra sindicalista vem lembrar a manifestação de Maio de 1974, aqui no Terreiro do Paço. "Nunca, desde essa época, houve um atentado tão grande contra a democracia", diz um professor. Outro diz: "A educação é o último reduto da liberdade." Outro tem um papel nas costas: "Deixem-me ensinar." Uma enorme faixa da escola Alberto Iria, de Olhão, diz: "Educar é amar."
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