ASSOCIATIVISMO
E CIDADANIA
“Quero um associativismo forte
e combativo, lado a lado com
outros movimentos de cidadãos
para o futuro”
O associativismo, nas suas diversas formas, preocupações e áreas
de intervenção, vive hoje uma crise que, não sendo nova, tem vindo a
agravar-se – perda de independência económica e política devido à grande
dependência dos programas co-financiados e consequentemente das respectivas
entidades financiadoras; dificuldade em manter um quadro estável
de técnicos e de activistas permanentes, por razões económicas; desfasamento,
na maior parte das situações, entre os objectivos impostos pelos
programas com financiamento público, os projectos desenvolvidos e as
reais necessidades e anseios das populações; burocracia resultante dos
procedimentos de “secretaria” dos projectos financiados pelos fundos públicos
que amarram as associações a uma carga excessiva de trabalho administrativo;
falta de continuidade dos projectos e intervenções e dramaticamente,
em consequência destas circunstâncias, uma crise de ideias no
mundo associativo.
No entanto o associativismo é uma realidade antiga e com raízes
fundas na sociedade portuguesa. Não só presta e garante a existência deum conjunto diversificados de apoios, serviços e actividades, como cria
vários milhares de postos de trabalho directos e indirectos. Garante ainda
uma vertente essencial da vida democrática, a dinâmica da sociedade civil
em contrapeso ao Estado omnipresente e às diversas formas de exercício
do poder. Será que estamos a viver uma crise estrutural no movimento
associativo em Portugal? A ser assim, que vias podem ser consideradas
para a debelar?
Sobre estas questões fomos ouvir Rui d’Espiney, Director da Animar
e a ICE - Instituto das Comunidades Educativas, que recentemente incentivou
a realização do Iº Congresso da Damocracia Participativa e do Associativissmo.
Com a adesão à União Europeia assistiu-se a uma
revitalização do
associativismo em Portugal, em particular daquele
ligado com o desenvolvimento
local e rural, ao terceiro sector e ainda à economia
social.
Mas o seu desenvolvimento, ao longo destes anos, tem
estado ligado ao
financiamento público de programas e projectos. Será
que a redução das verbas
e a previsão de um acesso mais restrito e mais
condicionado aos Fundos Comunitários
do próximo quadro comunitário vai implicar o
desaparecimento de um
número elevado de associações? E estas estão
condenadas a uma morte lenta ou
podem sobreviver?
RE - Pouco depois do 25 de Abril, em estreita ligação com a Educação de
Adultos – e, em particular, com as campanhas de
alfabetização que se realizaram
– mas também pela tomada de consciência da importância
estratégica de se
intervir tendo em vista a promoção da saúde, da
cultura e da própria economia,
irrompem aqui e ali iniciativas que visam um
desenvolvimento de base territorial,
em especial no mundo rural mas também no mundo urbano.
Projectos
como o Radial, o ECO e os de Alcácer, de Águeda, da
Amadora, de Aljustrel, de
Paredes de Coura ou do Bairro de Alfama são, sem
dúvida, fontes de animação
e conhecimento, viabilizados por apoios financeiros
exógenos (nomeadamente
fundações) mas nascidos dos interesses estratégicos
locais, dos anseios da
população.
É nesse período que alguns nomes se destacam pelos
contributos que
trazem à reflexão sobre desenvolvimento local,
animação popular e/ou educação
de adultos.
Em justiça, pode dizer-se que a experiência e a
reflexão assim acumuladas
informaram, pelo menos em parte, o “boom” associativo
que se deu – como
ressalta da vossa pergunta – a seguir à adesão da
União Europeia. Mas se
informou, não creio que tenho enformado. O que ditou a
multiplicação de ADL’s
e, na maior parte dos casos, a orientação estratégica
que as guiou foi – é essa a
minha convicção – a possibilidade de acesso aos fundos
avultados que essa
adesão permitiu. Como dizia um dirigente que lutava
pela viabilização da sua
associação – e dos mais coerentes e empenhados – “não
sou um corredor de
fundo mas um corrector de fundos”.
E se num ou outro lugar até aconteceu que a busca
destes apoios partiu
de quem tinha uma perspectiva alternativa de
desenvolvimento – vendo nesses
apoios apenas uma oportunidade para a viabilizar e
ampliar – bom número de
associações constituiu-se, realmente, tendo por grande
motivação a mera captação
de financiamentos: veja-se, por exemplo, as que
resultaram pura e simplesmente
da iniciativa de municípios que, na verdade,
funcionaram (e funcionam)
como extensões das autarquias, como formas de obter
financiamentos que a
estas eram vedados de outro modo.
E o certo é que quer umas quer outras destas
associações organizaram-se
ecresceram à sombra desses financiamentos,
empresarializando-se e dependendo,
actualmente, deles para sobreviver, pelo menos nas
exactas condições
em que existem e funcionam.
O facto de grande número destas associações, hoje, se
assemelharem por
aquilo que fazem só mostra que, de uma forma ou de
outra, se tornaram instrumentos
de políticas … meros executores de planos concebidos a
montante.
Enfim mais do que a revitalização do associativismo a
que se refere a
vossa pergunta, o que houve foi acima de tudo o
triunfo de um certo “agencialismo”
… E, como é evidente, se houver quebra brusca de
financiamento várias
destas associações-agências entrarão em grandes
dificuldades (o que, creio, até
já está a acontecer).
Duas palavras me parecem, entretanto, necessárias para
fechar esta
questão:
Primeira, a
minha opinião sobre o que se passou e passa com muitas das
associações de desenvolvimento não significa que não
considere algumas delas
– que se revelam, de facto, focos de requalificação
territorial.
Segunda, a
pergunta que me é feita remete-nos essencialmente para as
chamadas ADL e
não para as associações em geral. Seria de outra forma que
falaria do que se passa com as associações organizadas
em torno de causas ou
de interesses estratégicos, com as colectividades ou
com as pequenas organizações
locais. Não o faço porque não é para tal que aponta o
vosso questionamento.
Muitas associações, para sobreviver, têm concentrado a
sua acção na
prestação de serviços e/ou na gestão de programas
co-financiados abandonando
muitas vezes a sua missão original. É este um caminho
desejável e possível?
Num certo
sentido respondi a esta questão. Mas sempre acrescento algo:
Com o desenvolvimento, o que se deseja é a emancipação
das populações,
a constituição de caminhos alternativos à ordem social
e económica dominantes
e, como é obvio, não contribuem para tal as
associações que se “agencializem”,
tornando-se instrumentos de programas que visam a mera
reprodução (ou quando
muito a mudança quantitativa) da ordem vigente.
Isto não significa que eu seja contra toda e qualquer
forma de prestação
de serviço: Pode haver prestações de serviço que
sirvam a mudança que se
prossegue.
Por onde poderá passar a independência económica e política das associações,
que inscrevem nos seus objectivos actividades de
cidadania activa, mas
não dispõem de recursos próprios para o seu
funcionamento regular?
Não tenho uma resposta cabal a esta questão. Mas tenho algumas ideias
que podem contribuir para a busca dessa resposta.
a) Para mim não há associativismo, se não houver
promoção e produção
de cidadania, isto é, se o associativismo não for
cidadão. Ora a independência
política é inerente ao associativismo cidadão.
b) A conquista da independência económica – no sentido
de subsistência
sem se depender de programas de financiamento do
Estado – passa, pelo menos
também, pelo combate que se trave contra as
orientações a que obedecem tais
programas.
c) Transformada em movimento toda a acção cidadão se
autosustenta,
pelo menos em grande medida.
d) Falar de cidadania activa pressupõe defender a
afirmação e sucesso
da Democracia Participativa, pilar da Democracia
Plena, constitucionalmente
consagrada.
Ora, da mesma
forma que a Democracia Representativa precisa, para
existir, que sejam facultados as condições do seu
exercício porque não desejar
e exigir a viabilização material da Democracia
Participativa?
Pode ser estabelecida alguma analogia entre o
financiamento dos partidos
políticos que asseguram a base das relações políticas
da democracia e as associações
que garantem o dinamismo da sociedade civil, outra
vertente fundamental
do regime democrático?
Na questão anterior está contida a resposta a esta. Apenas acrescento que
há países – caso da Suécia – em que as associações, só
pelo facto de se constituírem,
passam a ter direito, tal como os partidos, a um
financiamento estatal.
Há vários anos que se fala num estatuto especial para
o associativismo
sobretudo numa nova visão da chamada concertação
social. Não deveria existir
uma presença institucional mais adequada e mais
significativa das organizações
de base associativa e cooperativa no quadro dos
chamados parceiros sociais?
A questão do
estatuto do associativismo é uma; a da concertação social é
outra.
a) Defender que há direitos das associações e dos
activistas associativos
que devem ser reconhecidos parece-me correcto. Não
vejo que se aceite que haja
prerrogativas inerentes ao exercício de funções na
Democracia Representativa
e que se negue a legitimidade de se garantir a “protecção”
necessária ao bom
desempenho de funções nas formas organizadas de
Democracia Participativa
que são as associações.
b) Já tenho muitas dúvidas quanto ao que pode trazer o
inserir das associações
e cooperativas nos mecanismos de concertação social.
Em meu entender,
estes mecanismos acabam, na prática, por constituir um
meio através do qual
os poderes instituídos asseguram a ordem e enquadram o
“mal-estar”. Em última
análise protegem a Democracia Representativa, ajudando
a que esta se não
questione e reconfigure.
Ora, o que se impõe, é que a Democracia Participativa
entre em interacção
directa com a Democracia Representativa forçando esta
a funcionar em novos
moldes.
Naturalmente, as associações e cooperativas devem
aproveitar toda e
qualquer oportunidade para (inter)agir com os poderes
instituídos, na busca
de justiça, de
transparência e de reconhecimento dos seus direitos … Mas todo
o passo que se der no sentido de institucionalizar
tais interacções, tenderá,
receio bem, a traduzir-se num abraçar dos paradigmas
que guiam e orientam a
ordem societária dominante.
Qual é a importância das associações na criação de emprego e na facilitação
de experiências profissionais, sabendo-se que é um
sector sem fins lucrativos?
Esta questão deixa-me um pouco atónito.
a) O facto de as associações não terem fins lucrativos
nada tem a ver com
a criação de emprego. Interessados – como devem ser e
estar as associações
cidadãs – no combate ao desemprego e ao
desenvolvimento profissional, as
associações podem e devem promover todas as
iniciativas que levem ao empreendorismo,
à valorização profissional, à criação e melhoria das
condições de
vida.
b) Os postos de trabalho que as associações criam em
ordem a viabilizar
os projectos que animam não são incompatíveis com a
circunstância de não
prosseguirem fins lucrativos.
c)Em ultima analise está em causa, a busca de uma
economia alternativa
à vigente, uma economia que não deixa de pressupor a
criação de postos de
trabalho, ainda que no quadro da nova ordem (que se
deseja).
As associações não escapam a muitas das pressões
existentes para auto-
-condicionarem a sua independência. Por vezes cedem a
imperativos relacionados
com as bases financeiras que se relacionam com a sua
sobrevivência e nem sempre
tomam posições públicas em defesa dos seus princípios.
Estaremos a caminhar
para um movimento associativo domado e ao serviço dos
que detêm o dinheiro e
o poder?
Por tudo o que
digo atrás é evidente que concordo com o vosso enunciado:
“muitas associações, por medo de perderem os apoios,
autocensuram-se”.
Mas não se pode universalizar esta afirmação.
É verdade, que os poderes instituídos têm trabalhado
(e continuam a
trabalhar) no sentido de “dar ao país” um movimento
associativo domado – e
ao serviço dos que detêm o dinheiro e de si próprios.
Mas a verdade, também, é que vivemos um momento em que
tomam corpo
vários
movimentos de cidadãos. A própria Animar fez (e acho que faz) parte de
um movimento a favor da afirmação da Democracia Participativa
e de uma
nova relação do Estado com as associações.
À intenção de nos domarem contrapõe-se a determinação
de muitos de
nós de nos emanciparmos.
Face às dificuldades existentes nem sempre é realizado
um debate aberto
e combativo. Como se pode justificar que as
associações não estejam na primeira
linha da utilização das novas modalidades de debate
público como os fóruns na
internet, as redes sociais e os movimentos cidadãos
cibernéticos?
É certo que
durante muito tempo se não travou o “debate aberto e combativo”
que as dificuldades impunham. Mas penso que as coisas
estão a mudar.
Com efeito:
a) há que reconhecer que um número significativo de
associações se
implicou no processo que conduziu à realização do
Congresso do Associativismo
e da Democracia Participativa , onde o debate foi “aberto
e combativo”;
b) o grupo de cidadãos que, após o Congresso em
questão, prosseguiu (e
prossegue) com o processo, disponibilizou vários
dispositivos de apoio ao debate:
um blog , um espaço no facebook e uma mailing list .
Acrescente-se que tão ou mais importante como a
capacidade (e predisposição)
de resposta das associações é o que se passa a nível
dos cidadãos em
geral … e o facto é que estes – recorrendo às
tecnologias mais “na berra” – estão
a mexer, como bem o provou a célebre e grandiosa
manifestação de professores
convocada por telemóvel e como bem o prova o movimento
da “Geração à
Rasca”.
Eu quero um associativismo forte e combativo mas na
medida em que
este intervenha como sustentáculo da Democracia
Participativa, lado a lado
com outros movimentos de cidadãos para o futuro.
Entrevista realizada por António Barata e Carlos
Ribeiro (Vez e Voz)
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